São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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O mandarinato irônico

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

``A música brasileira é mais que o cinema: é um tesouro mundial", afirma Rogério Sganzerla no trecho a seguir de seu diálogo com Júlio Bressane, que acaba de realizar ``O Mandarim", baseado na vida do cantor Mário Reis. Do filme, participam alguns dos principais compositores brasileiros, como Gilberto Gil e Chico Buarque.
Para os dois diretores, a música é que oferece o exemplo de liberdade e integridade que o cinema merece copiar. ``Para você conseguir chegar a essa liberdade formal aspirada pelo cinema, é fundamental estar atento à música", diz Sganzerla, que também comenta sua próxima produção, ``Tudo É Brasil". O filme é o último de uma trilogia do diretor sobre a vinda de Orson Welles ao país em 42 para as filmagens de ``It's All True", que nunca foi terminado.

Bressane - Você tem uma coisa muito boa, Rogério, que é esse seu diálogo com o João Gilberto. Você é amigo dele... Eu não o conheço.
Sganzerla - É como você também, com outros grandes, o Caetano, com quem você fez ``Tabu"... Nesse ponto temos sorte...
Bressane - Aquela voz do João Gilberto, aquele rigor dele é o cinema.
Sganzerla - Ele adora o cinema.
Bressane - Ele é o homem do cinema.
Sganzerla - A exemplo de Mário Reis, não é, Júlio? Muitos aprenderam a cantar sem voz, copiando-o. Lupicínio Rodrigues foi um dia assistir a um show de Mário Reis em Porto Alegre e foi preso, porque trabalhava num batalhão municipal e chegou atrasado ao quartel. Ficou trancafiado uma semana, mas disse: ``Ouvir o Mário Reis foi a maior experiência da minha vida".
Bressane - Lupicínio se dizia o Mário Reis da zona. O filme que acabei de fazer, ``O Mandarim", é uma visão do signo Mário Reis. Eu reconstituo alguns aspectos dele como cantor, alguns de seus gestos, alguns episódios de sua vida, as parcerias com Carmem Miranda, Noel Rosa, Chico Alves.
O exemplo do Mário Reis, para mim, é o desse homem que teve muito cuidado, muita ética, muito rigor com o seu trabalho. Entre 1928 e 1936, ele montou um repertório de cerca de 150 músicas. Foi buscar essas canções em cada lugar, como um garimpeiro de compositores. Foi o maior intérprete de Noel Rosa entre os homens. Gravou todo o Noel, era amigo dele, gravou Sinhô, Ismael Silva, Lamartine Babo, Ary Barroso, Mário Travassos de Araújo, tudo.
Após gravar essas canções, começou então essa coisa rara, ética, difícil entre nós. Começou um trabalho, vamos dizer assim, de recriação do seu próprio repertório. Eu não estou dizendo de aprimoramento, nem de melhoramento, nada disso, mas de recriação. Você ultimamente só encontra como exemplo desse comportamento, dessa micrologia seletiva, um homem como João Gilberto. Mário Reis apanhou aquelas músicas e, a cada década, recriava o mesmo repertório, reinventava-o, refazia-o.
Sofreu por isso. Sofreu dificuldades, privações, mas manteve aquele rigor. Por que essa importância? Ele pôde fazer isso por não se sentir nunca um funcionário de fábrica, alguém que precisasse todos os anos mostrar dois, três discos, cada ano com um ritmo diferente, um cabelo diferente. Ele não precisou disso, foi um artista.
É mais do que apenas ficar, a cada momento, a cada ano, querendo fazer o impossível: ser original. Isso não existe. Não existe originalidade em arte. Ele fez o contrário, mostrou que a questão é: uma voz que atravessa a vida. O homem é uma voz que atravessa um espaçozinho de tempo. Isso é algo que você pode encontrar em poucos.
Sganzerla - Por exemplo, no João Gilberto, e em Jimmy Hendrix também. Ele tenta se copiar e não consegue. E tenta se repetir e não repete, porque, a cada vez, com o mesmo arranjo e tudo mais, a coisa sai outra, completamente diferente. É uma delicadeza interior, livre do sistema...
Bressane - É uma posição ética muito bonita, a contrapelo dessa vulgaridade, dessa barbárie. Aquilo tudo é um mandarinato irônico. É o signo da arte, com aquela micrologia do artista, atento a todos os espaços, a todas as silabações.
Sganzerla - Tenho certeza de que, para você conseguir chegar a essa liberdade formal no cinema, é fundamental estar atento à música. A música, principalmente a tradicional, que na verdade é a música revolucionária dos anos 30, ela sempre esteve à frente do cinema. A música brasileira é mais que o cinema: é um tesouro mundial.
Você tem que estar atento aos mestres, porque são pessoas que sabiam o que faziam e faziam bem melhor e antes de todos. Um outro meio para se chegar a essa liberdade no cinema, a liberdade que a música tinha e que alguns cantores conseguem manter, é exatamente a fusão de estilos, que o Orson Welles ousou fazer aqui, em ``It's All True". Ele foi o precursor.
É isto que eu pretendo investigar no filme que eu estou fazendo, que se chama ``Tudo É Brasil", uma expressão que se usava muito na época em que ele veio filmar no país e que fala desta fusão das influências. Até a indumentária da época, aquelas roupas listradas muito usadas, tudo é invenção do Welles. Ele é também um grande estilista do comportamento.
Seria preciso descobrir as raízes todas desses desacertos que ele teve em sua vinda ao país, porque ele foi muito bem acolhido. As pessoas gostavam dele, embora, de uma certa forma, ele também tenha sido um transgressor, porque foi muito além do seu tempo. Foi muito precoce.
Eu diria, Júlio, que dar condições a você de fazer um filme sobre o Mário Reis é proveitoso para toda a cultura brasileira, porque, afinal, você conheceu o Mário Reis e tem uma afinidade muito grande. O meu é também um filme barato, que não daria prejuízo, não iria modificar nenhum orçamento. É o BBB, como diziam na época: bom, bonito e barato -a mesma fórmula da Belair.
Bressane - Isso é brasileiro.

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