São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Olhos do Estado

A história do Estado moderno sempre foi, também, a história das lutas pelas liberdades civis e, portanto, das conquistas da sociedade contra o próprio Estado.
Infelizmente, o governo brasileiro tem falado muito em reforma do Estado, mas na prática tem parecido maior a vontade política de fortalecer o Estado contra a sociedade.
Na semana passada essa gula tornou-se explícita. O governo deseja flexibilizar as regras para a instituição de empréstimos compulsórios e para a quebra do sigilo bancário, no cerne mesmo da reforma fiscal.
O compulsório tem algumas justificativas técnicas até razoáveis. Há por exemplo a hipótese de que, recorrendo ao empréstimo, o governo consiga reduzir a pressão de consumo na economia ao mesmo tempo abrindo mão da manutenção de taxas de juros reais elevadas.
Assim, teoricamente, os investimentos na ampliação da produção, da oferta de bens, portanto, teriam o tempo necessário para amadurecer enquanto o consumo é adiado.
Como sempre, uma técnica parece fazer todo o sentido do mundo apenas enquanto se a examina em si mesma, restrita à própria lógica. Contextualizado, na prática o empréstimo compulsório deixa de ser apenas um ``instrumento" neutro e se revela um autêntico absurdo.
Afinal, que consumo trata-se de restringir através dos compulsórios? Se se tratar da enorme massa de baixa renda que acedeu ao mercado depois da estabilização, então é um consumo de bens essenciais, um consumo que estava reprimido pela inflação elevadíssima. Retirar esse poder de compra do mercado instituindo um empréstimo equivalente ao antigo imposto inflacionário seria extremamente injusto.
Se, entretanto, o compulsório visa às faixas de renda mais elevadas, ou seja, aquelas que não consomem tudo o que ganham, novamente seria de eficácia duvidosa. Isso porque essas classes são poupadoras, ou seja, já são credoras (ao aplicarem na poupança ou em fundos já estão ``emprestando" ao governo). Fazer com que emprestassem mais, forçadas, induziria a que reduzissem a poupança voluntária, cancelando ao menos em parte a intenção do governo.
A mesma lógica tecnocrática inspira o afã de facilitar a quebra do sigilo bancário. As justificativas técnicas mais uma vez parecem irrefutáveis: aumentar a arrecadação ou combater o narcotráfico. Contextualizada, a pretensão dos técnicos ganha ares totalitários: a quebra facilitada do sigilo, nas mãos de um Poder Executivo aliás já mal-acostumado a governar por medidas provisórias, pode representar uma arma política que dificilmente animaria nos governantes a sabedoria e o puro desvelo pela coisa pública.
Já se comparou o Estado a monstros, gigantes, leviatãs e elefantes. São metáforas que destacam o horror, o tamanho e o peso. Mas o olho grande do Estado pode ser igualmente arrasador.

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