São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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A culpa dos clubes

PELÉ

Se a torcida do meu Santos cometer um ato de violência, o clube deve ser punido por isso. Hoje, o CBDF (Código Brasileiro Disciplinar de Futebol) só prevê punição aos clubes nos casos em que um ato da torcida influa no resultado do jogo, e é preciso ampliar a abrangência dessa punição.
Porque os clubes também são responsáveis, já que auxiliam as torcidas com ingressos e outras facilidades. Na verdade, alguns presidentes de clubes são reféns dos chefes de torcidas. Se se sentirem ameaçados, ou abandonarão essa gente ou, pelo menos, a controlarão.
De mais a mais, quando o clube vier a ser punido pelo vandalismo do seu torcedor estará tirando dele o argumento de que é capaz de qualquer coisa por sua paixão, já que estará prejudicando tal paixão. Em vez de herói, será vilão.
Sei que muita gente argumentará ser injusto punir o clube. Dirão até que será fácil organizar um grupo de, por exemplo, santistas, para vestir a camisa do Corinthians e provocar uma punição ao adversário. Balela. Uma simples investigação policial desmancharia a farsa e o Santos é que seria punido.
Além disso, uma coisa precisa ficar bem estabelecida: futebol não é uma questão de vida ou de morte. Os critérios de justiça no esporte devem ser diferentes dos que regem as outras áreas de atividade. Alguém precisa pagar pelos crimes motivados pela disputa esportiva e será menos grave cometer uma injustiça contra um determinado clube do que manter a impunidade atual.
A Europa puniu os clubes ingleses afastando-os das competições continentais durante cinco anos por causa do que os torcedores do Liverpool fizeram em um jogo na Bélgica. Alguém poderá perguntar o que é que os demais clubes ingleses tinham a ver com isso. Mas o fato é que todos foram punidos, e com o apoio da Rainha, diga-se de passagem. Pode não ser a solução ideal, mas é uma das possíveis.
É claro que outras medidas precisam ser tomadas e nós vamos tomá-las, seja mudando o Código Penal, sensibilizando o Poder Judiciário para a gravidade do problema, seja pressionando para que os estádios brasileiros venham a ser numerados e outras providências mais. Mas não é possível continuar assim, como se os clubes não fossem co-responsáveis, quando todos estamos cansados de saber que são.
O fim da violência nos estádios se impõe por todos os motivos óbvios e até por razões econômicas. Afinal, se nada mudar, chegará a hora em que os patrocinadores fugirão do futebol, tementes de ver os seus logotipos nas camisas usadas por vândalos que vão ao estádio cometer atrocidades.
E, se isso acontecer, aí sim os clubes verão o que é uma punição porque, hoje em dia, não é possível fazer futebol profissional sem patrocinadores fortes como respaldo.
Ouso dizer, enfim, que punir os clubes pela violência de seus torcedores é um instrumento que os protege de prejuízos ainda maiores. E que pode levá-los a estabelecer uma relação muito mais proveitosa com seus verdadeiros torcedores, aqueles anônimos, verdadeiramente apaixonados, e que nem estão frequentando os estádios, com medo dos que hoje ocupam os espaços que antes eram pacificamente preenchidos.
O episódio do Pacaembu foi a gota d'água. Todos nós somos responsáveis pelas coisas terem chegado a esse ponto. Todos nós seremos responsáveis pelas soluções e, felizmente, a sociedade brasileira está exigindo um basta à violência, todas elas, principalmente a da fome que ainda flagela tantos brasileiros. Mas que não se impute à fome a violência nos estádios. Fosse assim, o problema na Europa não teria chegado ao ponto em que chegou.
Estamos diante de mais uma questão que diz respeito à cidadania. Vamos enfrentá-la com coragem.

EDSON ARANTES DO NASCIMENTO (PELÉ), 54, empresário, é ministro extraordinário dos Esportes.

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