São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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O Brasil e a "República de Berlim"

CELSO LAFER

A visita do presidente Fernando Henrique Cardoso à Alemanha, em setembro, tem suscitado substancioso debate. A importância do tema leva-me a alinhar algumas observações sobre a matéria. Começo com o óbvio. O relacionamento político entre Brasil e Alemanha parte de um denso relacionamento econômico.
Este data dos anos 50, quando convergiram milagre econômico alemão e o aprofundamento do processo brasileiro de substituição de importações, de que foi um marco o governo Kubitschek. Esse processo, que teve continuidade nos anos que se seguiram, significou uma aposta dos meios alemães nas potencialidades brasileiras.
Nesse sentido da continuidade é relevante apontar que a Alemanha é hoje o segundo principal investidor estrangeiro no Brasil e o terceiro parceiro comercial do nosso país.
A natureza do relacionamento Brasil-Alemanha acima mencionado é um desdobramento, do lado brasileiro, do tema recorrente desde 1930 de nossa diplomacia: favorecer o desenvolvimento. Do lado da República Federal da Alemanha, é consequência do papel e da identidade internacional assumidos pela Alemanha no período da Guerra Fria, quando transferiu a ênfase no campo estratégico-militar para o econômico.
Com efeito, no pós-Segunda Guerra Mundial, a República Federal redefiniu a sua identidade internacional e, à semelhança do Japão -e em parte pelas mesmas razões-, tornou-se um paradigma de ``trading state" na acepção de Rosencrance. Ocupou, assim, lugar proeminente na ordem internacional, deixando de lado a anterior dimensão política de ``inassimilável grandeza", para lembrar a qualificação de Kissinger, que a caracterizou quando emergiu, desde 1870, como grande ator internacional.
A superação da plúmbea herança do nazismo e da Segunda Guerra foi perseguida pela Alemanha, como ``trading state", com inteligência e determinação. Elementos-chave dessa política foram:
1) o comprometimento com a construção da Europa comunitária e a consequente diluição das animosidades que, no contexto regional, cercaram a ``inassimilável grandeza" da Alemanha; 2) a construção da aliança franco-alemã, que permitiu arquivar as tensões que por três vezes haviam conflagrado o coração da Europa; 3) a valorização da democracia e dos direitos humanos como contraponto permanente aos horrores do totalitarismo; 4) finalmente, sustentada nesses elementos-chave, a ``idéia-força" da reunificação.
Esse foi o quadro em que se desenvolveu a política externa alemã durante a Guerra Fria, cujo fim colocou a Alemanha diante de novas realidades.
A primeira foi a da reunificação, alcançada com grande competência pelo chanceler Kohl, quando as condições do sistema internacional o permitiram. A segunda, nem sempre tematizada com o realce devido, diz respeito a uma pergunta básica: quais as fronteiras-cooperação e as fronteiras-separação da Europa?
A resposta a essa pergunta guarda relação direta com o futuro da União Européia e com o papel que nela desempenhará a Alemanha, tendo em vista o jogo dialético entre dois conceitos presentes na dinâmica de todo processo de integração: aprofundamento e alargamento.
Em resumo, o que se põe na construção comunitária européia pós-Guerra Fria, que terminou com a fronteira-separação representada pelo Muro de Berlim, é a relação de complementaridade e contradição entre consolidar e intensificar a integração já adquirida (aprofundamento) e ampliar os países membros (alargamento) ou ainda criar -também à luz de considerações estratégicas- novos laços, através de acordos a Leste ou ao Sul.
Não é preciso dizer que o aprofundamento somado ao alargamento traz os riscos de perda de velocidade e intensidade e problemas de reestruturação das instituições comunitárias de grande envergadura. Daí o tema da Europa de múltiplas velocidades e o papel da Alemanha nesse processo.
Esse papel, por sua vez, passa pela redefinição mais precisa do projeto de irradiação internacional da Alemanha, o que nos leva à discussão da terceira realidade, trazida pelo fim da Guerra Fria e que deriva do desaparecimento da bipolaridade Leste/Oeste. Essa nova realidade dá à Alemanha a oportunidade de ir além do seu projeto de ``trading state", reposicionando a sua identidade em um sistema internacional de polaridades indefinidas. Esse reposicionamento precisa ser esclarecido a fim de se poder aferir o novo potencial de convergência entre a Alemanha e o Brasil.
Não tenho dúvidas em afirmar que esse potencial de convergência será muito significativo se o desdobramento da nova identidade internacional da Alemanha deixar de lado a herança hegeliana e a sua visão do avassalador papel das grandes potências na história universal e caminhar para a herança kantiana do Projeto de Paz Perpétua.
Esta, observo, acha-se na evolução lógica de sua atuação como ``trading state" como, aliás, se depreende de um discurso recente do presidente Roman Herzog, quando diz que as características da política externa alemã, que valeram para a ``República de Bonn", terão, em novas circunstâncias, de continuar valendo para a ``República de Berlim".
Com efeito, o Brasil, como país de vocação global, que vem reforçando a ``soft power" de sua credibilidade internacional, apresenta, para a Alemanha, a clara potencialidade de uma parceria estratégica, sem o peso e as condicionantes que há na Europa ou encontradas nas relações com os EUA.
Essa parceria sustenta-se no acervo expressivo do relacionamento econômico e na simetria da importância de ambos os países em seus respectivos entornos, central para a paz e a segurança e a prosperidade econômica regionais em cada caso. A isso cabe agregar a crescente convergência de pontos de vista entre o Brasil e uma Alemanha kantiana sobre diversos pontos da agenda global.
Vale aqui citar recente artigo do chanceler Lampreia sobre o relacionamento bilateral Brasil-Alemanha quando elencava, entre as posições que compartilhamos, o ``compromisso com o desarmamento e a não-proliferação, apoio a um papel mais ativo da ONU, em especial do Conselho de Segurança, e apoio aos regimes democráticos."
Em resumo diria que, alicerçado em um passado de realizações, o relacionamento político Brasil-Alemanha encontra-se em um momento promissor, representativo de um espaço de liberdade e de um horizonte de oportunidades que caberá aos dois países aproveitar para aprofundar seus vínculos e colaborar na construção de uma ordem internacional mais justa e estável.

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