São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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para ler só no ano de 2030

MARILENE FELINTO

Que na nossa cabeça pequena caiba o mundo todo, eis a exigência absurda. A 7ª Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, que termina hoje, deixa as perguntas de sempre. Quantos livros existem no mundo? Por que se escreve tanto?
Foram 125 mil títulos expostos. Na última Feira do Livro de Frankfurt (das maiores do mundo), em 1994, na Alemanha, foram quase 322 mil, sendo que 90 mil eram de livros novos. Também os espaços são imensos. No Rio, 24 mil m². Em Frankfurt, 131.408 m², um labirinto de pisos, corredores, escadas e esteiras rolantes.
Em Frankfurt, foi possível não abrir um único livro. A trabalho no local, cruzei os corredores como quem, alheio, está sendo levado pela mão. O estardalhaço era o mesmo das feiras de rua, dos mercados públicos de qualquer cidade.
O mercado São José, no centro de Recife, era igualmente sortido. A variedade de coisas embaralhava a vista e embrulhava o estômago: vendia-se de coentro a discos, de literatura de cordel a fumo de rolo, de bucho de boi a bonecos de barro.
A vitrola da barraca de discos emitia a canção estranha, que sobressaía na gritaria dos mercadores, que martelava em nossos ouvidos a palavra incompreensível: bigorrilha.
O som da música alastrava-se pelo mercado, embalando a falta de sentido generalizada: "Lá em casa tem um bigorrilha/bigorrilha fazia mingau/bigorrilha foi quem me ensinou a tirar o cavalo do pau".
Na diversidade, perdia-se a noção do valor das coisas. Para que se escreve tanto? Para Carlos Drummond de Andrade, a causa é o coração pequeno, incapaz de comportar o mundo grande. "Tu sabes como é grande o mundo, dizia ele. "Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão".
Ele dizia que escrevia porque não cabiam as suas dores no coração: "Por isso gosto tanto de me contar./Por isso me dispo,/por isso me grito,/por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:/preciso de todos."
Mas e a multidão de escritores ruins? Publicam por quê? Não se constrangem de reunir em livro o amontoado de besteiras que disseram em jornais, por exemplo. São coletâneas de artigos, de crônicas, disso e daquilo outro. Apostam, vorazes, na prosa e na poesia insípida que produzem.
As bienais soltam pelo ladrão esse tipo de livro. Enquanto isso, bem sentados em casa, os autores esticam as pernas diante da estante, passam horas admirando a obra editada, o nome reluzindo na lombada.
É esse o tipo de "obra" que se entrincheira e se arma contra nós, em grande maioria, nas prateleiras das feiras de livros: espreitam de longe, desafiam a nossa ignorância, os nossos corações de passarinho.
Escritores ansiosos, poetas ensandecidos telefonam, escrevem sem parar para as redações dos jornais, infernizam a vida dos editores. Querem seus nomes publicados, destacados em negrito no alto das páginas. Dão-se tanta importância, como se estivessem desempenhando alguma função pública essencial.
Vaidade pura, ostentação. A precondição para ler bons livros é não ler livros ruins -pois a vida é curta, dizia o filósofo. Melhor escrever para os analfabetos, ou seja: para os homens do Brasil que só lerão em 2030, quando se prevê extinto o analfabetismo nosso em massa.

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