São Paulo, sexta-feira, 1 de setembro de 1995
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Belgas e franceses promovem novo descobrimento

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Neste ano, não vou ao Simpósio de Oxford, em setembro. Não deu. Também, eu teria que dar o perfil culinário de nosso país, que ainda nem sei como é.
Qual será a nossa cara? Ainda não temos. Uma mistura de vozes. Dois brasis, um que come e outro que não come.
Em culinária, nos cabe falar do que se come. A "cuisine" depende de civilização, fartura de ingredientes, lazer, educação para comer. Ainda chegaremos lá.
Enquanto isso vai se perdendo o passado, por falta de treino. Não cozinhamos mais. Não temos tempo. A culinária está se tornando um fenômeno sociológico. Ou se come fora, ou se engana, com um sanduíche, um lanchinho, uma comida congelada, um Miojo. E todo mundo entende que a vida é pouca para tanta correria.
E a comida brasileira, comidinha de todo dia, arroz, feijão, legume cozido, salada, carne assada, purê de batata... Essa é a mais difícil de ser preparada, a que mais suja as panelas.
É preciso um exército de empregadas para ter todo dia, no almoço e no jantar, uma refeição típica brasileira. O que se vai fazer?
Uma solução começa a se esboçar. Laurent Suadeau, francês, chegou aqui, casou com brasileira e agora está aflito querendo preservar a paca, a anta e a cotia.
No outro dia fui ao L'Arnaque, do belga Quentin de Saint-Maur, almoçar. O restaurante, que era um pequeno bistrô, passou por modificações, cresceu, embelezou-se. E de repente, com os olhos iluminados de vocação missionária, o belga Quentin também está descobrindo o Brasil.
Ele, que foi o primeiro a nos mostrar a "nouvelle cuisine", agora, ajudado pela mulher muito brasileira, descobriu que, já que as pessoas não podem se dar ao luxo de resgatar e conservar valores da comida brasileira, isso passou a ser obrigação dos restaurantes.
Na hora do almoço, junto ao seu bar hollywoodiano, simplesmente abriu um pranchão, uma tenda de comida brasileira. As pessoas estão chegando, aos montes, para comer um barreado, uma moqueca, um arroz com leite de coco, tudo muito leve, belíssimo cozinheiro que ele é.
E quem tiver receitas d'antanho, é só correr ao L'Arnaque e dizer: "Olhe, minha avó fazia isso e aquilo". E ele vai tentar recuperar esses sabores perdidos.
Ele quer saber de cada pimenta, de sua fragrância, seu pique, sua cor, seu nome. Das ervas, do ora-pro-nóbis, da bertalha, da língua-de-vaca. Sabe das mais incríveis farófias, entende dos feijões de Pernambuco, do guandu, do verde, do de corda. Das Angolas, dos quindins, das ambrosias...
E o jeito de podermos comer com gosto de quintal de infância é ir aos restaurantes. Até as avós agora trabalham e mastigam chicletes. Tudo mudou.
Suponho que eles precisarão se despir de todos os linhos, garçons enluvados, copos de cristal e se tornar pelo menos uma vez por dia menos intimidativos, mais baratos, mais ao nosso gosto, um pouquinho para botequim. Lugar para ir comer e não para olhar e ser olhado...
Prestigiaremos todos, dentro das possibilidades. Os belgas e os franceses vão nos devolver o gosto perdido, com o nhoque delicado dos seus muitos anos de civilização. Não queremos outra coisa. Vamos à luta, Quentin do L'Arnaque, vamos dar cara à nossa comida, aqui e agora. Boa sorte! Estamos todos a fim de ajudá-lo a descobrir o Brasil.

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