São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Retratos de Florestan

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

Finalmente, eu vacilaria entre um bom conjunto de livros relativos à questão do desenvolvimento e da dependência, temas que marcam o revigoramento, mas não necessariamente a redefinição de sua obra. Entretanto, penso que "Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento" (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1968), de um lado, e "A Revolução Burguesa no Brasil" (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1975), de outro, são os livros que servem como eixo de referência não só para compreender o Brasil que se seguiu à queda do que ele chamava de "antigo regime", com a abolição da escravatura e a proclamação da República. Mas que, com "A Integração do Negro", são de fato a chave interpretativa do conjunto de sua obra. Uma versão parcial e preliminar de "Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento" eu a li e comentei com ele antes da publicação em 1968.
Esse trabalho me influenciou muito na leitura dos dados de minha primeira pesquisa sobre a questão agrária, realizada em 1966 em três diferentes regiões do Estado de São Paulo. Tenho uma identificação grande com esses dois livros também por motivo pessoal e afetivo. Num momento em que minha carreira foi ameaçada pela intolerância de um colega, o professor Florestan teve a generosidade de me convidar para trabalhar como seu auxiliar de ensino, no primeiro semestre de 1966, num extraordinário e fascinante curso optativo sobre "Formação e Desenvolvimento da Sociedade Brasileira". Ele me fez uma lista de autores, que eu só conhecia parcialmente, para discutir com seus alunos em seminário. Essa lista incluía Euclides da Cunha, Alberto Torres, Gilberto Freyre, Nestor Duarte, Joaquim Nabuco, Victor Nunes Leal e outros, sobretudo os pré-sociólogos. Foi um privilégio inesquecível ter acompanhado suas aulas e estudado com os alunos os textos que ele indicara.
O professor Florestan Fernandes, nos últimos anos, preocupou-se muito em assegurar, até onde lhe era possível, que a leitura de sua obra levaria em conta uma linha de retidão e coerência, do primeiro ao último trabalho. Sobretudo, ele parecia muito preocupado em assegurar que seus leitores de agora não vissem nela uma obra fraturada em dois momentos inconciliáveis: o do sociólogo e do socialista. Em nosso último encontro, em julho, numa agradável manhã de sábado, poucas semanas antes de sua morte, em meio a uma conversa amena, ele voltou ao assunto. Deu-me a impressão, como em vários dos seus escritos e depoimentos mais recentes, de que queria justificar-se pelo fato de que em alguns dos livros mais significativos de sua carreira a sua condição de militante possa não ficar transparente. Nem era necessário que ficasse, penso eu. Porque transparente foi desde o começo o seu inegável compromisso com o que se poderia chamar de sociologia crítica, que era também um compromisso radical com as lutas pela transformação da sociedade brasileira numa sociedade democrática, justa e desenvolvida.
Felizmente, para todos nós, foi assim que ele definiu a sua linha de conduta como intelectual e professor. Ele temia ser classificado como eclético, chavão desabonador que os estudantes, que se consideravam mais de esquerda do que seus professores, passaram a aplicar a partir do final dos anos 60 aos cientistas sociais que coerentemente entendiam que a formação científica das novas gerações de estudantes de ciências sociais passava necessariamente pelo conhecimento da diversidade de perspectivas e orientações dos chamados clássicos. Além disso, ele tinha justificado horror aos modismos interpretativos, que aliás se difundiram já nos anos 60: num momento domina Sartre, noutro Goldman, noutro Althusser, noutro Foucault. E a legitimidade do conhecimento passa a depender de um único autor e de seu endeusamento.
Ele entendia com razão que o estudante de ciências sociais, especialmente o dos primeiros anos da graduação devia receber aulas apenas dos professores maduros e experimentados e devia, também, ter contato direto e profundo com os clássicos.
Mas adotar uma orientação interpretativa das questões sociais em termos rigorosamente científicos, sem qualquer concessão de natureza ideológica, parecia aos principiantes e afoitos um gesto de incoerência e vacilação. Foi, aliás, o clima que prevaleceu nos chamados "acontecimentos da rua Maria Antônia", em 1968. A diversidade de orientações interpretativas nas ciências sociais não era debatida nas famosas e discutíveis comissões paritárias. Eram apenas impugnadas pelo radicalismo, no fundo autoritário, daquelas horas de euforia e de certezas que se revelaram infundadas. A minha impressão é a de que o professor Florestan foi de algum modo alcançado pelo desconforto daquela onda de crítica superficial que afetou a todos de diferentes modos.
É compreensível que ele tenha se sentido desafiado por aquelas mal alinhavadas idéias do radicalismo juvenil, embora elas tenham sido esquecidas muito depressa pelos próprios protagonistas, em função mesmo das condições e da rapidez com que as coisas aconteceram, inclusive a exclusão da universidade, pela ditadura, dele próprio, de dois de seus assistentes e de vários outros professores. É que ele parecia entender, e com razão, por convicção política e profissional, que seu trabalho honesto e coerente (e, acima de tudo, competente, digo eu) não tinha por que ser confundido com aquilo que efetivamente não era. Ele compreendeu com clareza, e o disse, que as circunstâncias do trabalho do sociólogo na universidade estavam mudando e que os papéis sociais do sociólogo também estavam sofrendo mudança.
A sociedade agora apresentava questões à interpretação sociológica bem diversas daquelas que haviam dominado a atenção dos cientistas sociais nos anos 40 e 50. E por isso, pela voz dos que atuavam nos movimentos de inconformismo, questionava não só, no plano imediato, a ditadura e, no plano remoto, o conservadorismo das elites (que insinuava ser também o suposto conservadorismo da universidade): questionava as interpretações que os cientistas sociais faziam sobre a sociedade e os rumos do seu desenvolvimento. Não só a realidade das relações sociais desiguais e as injustiças a elas inerentes eram objeto do questionamento. Mas também o modo como essa realidade era interpretada. O professor Florestan compreendeu isso imediatamente. Essa era, aliás, a base da sua orientação teórica: a sua análise sociológica está sempre referida ao ponto de partida da explicação que o grupo estudado desenvolve para se situar no mundo. Isso aparece claramente nos fundamentais estudos sobre o folclore e nos estudos sobre o negro.
O professor Florestan mais de uma vez disse aos que quiseram conhecer sua história pessoal para, por meio dela, entender a história da universidade e a história da intelectualidade brasileira, que sua biografia não era típica. Ele vinha do submundo dos lumpen-proletários e dos desenraizados. Vinha de uma família de rústicos imigrantes portugueses do Minho que fora destroçada pelas adversidades da vida na cidade de São Paulo, dizia. Cursara até o terceiro ano primário na rotina de uma vida instável e difícil com Dona Maria, a mãe lavadeira, nos cortiços e quartos de porão dos bairros pobres de São Paulo. Trabalhou desde os seis anos de idade. Foi de tudo: de engraxate nas ruas a garçom do Bar Bidu. Só voltara à escola já adulto, com 17 anos, para fazer o curso de madureza.
Uma patroa de sua mãe, da família Bresser, no bairro do Brás, tornou-se sua madrinha. Mas recusava-se a chamá-lo pelo nome, pois dizia que Florestan não era nome de pobre. Chamava-o, então, de Vicente. Ele mesmo dizia que o Vicente começou a morrer quando entrou na universidade. Ali começou a nascer o Florestan. Esse duplo ser reaparece no modo como se tornou intelectual e militante, embora fosse mesmo um intelectual militante. Ele falou de si mesmo várias vezes como sociólogo e socialista, para indicar as dificuldades que o sociólogo tinha para ser um sociólogo socialista. De fato, era uma dupla condição, como ele mesmo escreveu mais de uma vez, decorrente da fragilidade do movimento socialista entre nós, incapaz de assegurar ao cientista social as condições de apoio necessárias a uma vida intelectual independente.
Essas duplicidades de condição, mas não de orientação, são próprias de uma sociedade periférica como a nossa. Ela está na raiz de quase todos nós e de quase tudo que fazemos. Nesse sentido, ao contrário do que ele pensava e dizia, sua biografia é uma biografia típica e seu desenraizamento, um desenraizamento criador e revelador (de certo modo, mantidas as diferenças, como Mannheim imaginava o verdadeiro intelectual). A biografia (e a obra) do professor Florestan Fernandes é a história dos sem-história. É a história da emergência dos pobres na história, como sujeitos de seu destino, com seu próprio nome. Esse é o busílis da questão, como ele gostava de dizer.

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