São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Um programa nuclear para os pobres

JOÃO SAYAD

A esquerda deve ter inveja da direita. Eu, pelo menos, tenho. A direita, talvez por ser dogmática ou por interesses sólidos no que existe e horror a especulações, age com muita eficácia. A esquerda discute, tergiversa e tenta implementar seus planos com muito cuidado, muita ética, muito medo de errar e acaba não fazendo nada.
Estas idéias me ocorrem quando analisamos os planos sociais levados a cabo no Brasil. O que está sendo feito pelos pobres brasileiros? Pelo que eu sei, e posso estar enganado, o governo está desenvolvendo programas de apoio comunitário, começando em bases experimentais com pequenos municípios pobres do Ceará.
Existem dois tipos de pobres. Os pobres tradicionais e os "novos-pobres". Uma situação parecida com a dos ricos: os ricos quatrocentões e os "novos-ricos". Os pobres tradicionais são os índios, as comunidades de pescadores em pequenas cidades litorâneas do país -como os caiçaras e os pescadores do Ceará-, os caboclos perdidos na floresta amazônica que vivem de pequenas atividades extrativas, de caça e pesca, os trabalhadores rurais de zonas agrícolas tradicionais e estagnadas. Aliás, não sei nem se são pobres, quero dizer, infelizes.
No caso dos pobres quatrocentões, lembro-me sempre da piada do novo rico que, a bordo de um imenso iate, começou a questionar por que o caiçara, que pescava com uma linha numa pequena canoa, voltava para casa depois do primeiro peixe. O novo-rico, capitalista inveterado, começou a questionar o caráter não-competitivo do caiçara. "Você deveria pescar com uma rede, investir num barco maior, crescer". O caiçara deu uma sábia resposta: "E para que fazer tudo isso? Para ficar rico e depois poder ficar pescando calmamente, como eu já estou?"
Este pobre quatrocentão não precisa da atenção ou dos cuidados do governo ou da economia capitalista. A menos que tenhamos um fervor capitalista e queiramos doutriná-los a sair deste marasmo de caboclo com verminoses de Monteiro Lobato e transformá-lo num barão de Mauá. Mas já temos tantos problemas a resolver que os pobres quatrocentões deveriam ser deixados em paz e, quem sabe, servir de fonte de inspiração e sabedoria para nossos dias tão cheios de ansiedades e angústias.
Já os "novos-pobres" são outro problema. São principalmente fruto do próprio desenvolvimento. Desalojados da agricultura pelo processo de modernização, jogados nas periferias das grandes cidades, terceirizados, transformados em "autônomos" informais, são o resultado mesmo do desenvolvimento brasileiro. Famílias destruídas, crianças sem amparo ou educação vendendo Mentex nas esquinas, os "novos-pobres são os pobres desorganizados, os pobre que não querem continuar pobres e que representam um grande contingente da pobreza brasileira. E o que fazer para eles?
Não há modelo a seguir. Os Estados Unidos se frustraram e desorganizaram a maior parte dos programas sociais que existiam antes de 1979. Os países europeus com populações mais homogêneas e menores têm apenas entre os imigrantes um problema semelhante. Mas o imigrante é um pobre que não quer ficar pobre e que tem iniciativa -viaja e enfrenta os preconceitos dos países hospedeiros. A segunda geração será, sem dúvida, uma geração de pequenos empresários capitalistas. Portanto, aí não há modelo a seguir.
Se não há modelo a seguir, temos que experimentar. Experimentar com programas de natureza diferente e permitir que os bem-sucedidos se multipliquem. Escola cooperativa, como em Maringá, por exemplo. Se deu certo, façamos outras. Escola-modelo, como em São Paulo- se funcionou aqui, experimentemos acolá. Projeto Cingapura em São Paulo -se der certo aqui, vamos experimentar no Rio. Ciacs, Cieps ou coisa do tipo, sem construção de escola, mas com cópia do modelo de ensino -funciona? Multipliquemos. Programa do leite, por que foi desmantelado? A ênfase é educação -mas não educação primária em detrimento da superior. Educação em detrimento de qualquer coisa -juros, por exemplo. É preciso ousar e experimentar.
Se eu fosse o Norberto Bobbio e pudesse pontificar sobre o que é social-democracia, diria o seguinte: a consciência clara de que o capitalismo não vai resolver o problema da pobreza; ao contrário, pode agravá-lo. Não vai criar empregos suficientes; ao contrário, vai agravar o problema do desemprego, com a qualidade total, a terceirização e a automação. E, para que o capitalismo possa crescer sem ter que ser cercado de arame farpado, ficando de um lado da cerca o mundo dos ricos e do outro a ameaça dos novos pobres, é preciso experimentar, investir e gastar dinheiro para integrar os pobres -por meio de gastos vultosos, ou melhor, generosos, em alimentação, educação e habitação.
Aí vem a inveja da direita. A direita investiu em Itaipu, programa siderúrgico, petroquímico, nuclear, Ferrovia do Aço etc. Acertou em muitos, como Itaipu. Errou em muitos, como no programa nuclear. Mas experimentou e o saldo foi claramente positivo. Mais ainda: quando pensou em educação, partiu logo para o Mobral. Não continuou, não funcionou, mas experimentou.
O governo atual tem toda a credibilidade, a competência, o "curriculum vitae" e a experiência de vida para iniciar um grande programa de educação, alimentação e habitação para os novos-pobres. Pelo amor de Deus, não vamos mexer com os caiçaras que estão muito felizes. Mas é preciso ousar -livres das amarras do déficit público, do liberalismo não-intervencionista. Afinal de contas, na história deste país quem faz déficit público são governos de direita e quem acerta as finanças públicas são os governos de esquerda. Veja o Montoro e a Erundina em São Paulo e compare com os governos de Paulo Maluf e dos presidentes Figueiredo e Geisel.
Os pobres merecem um belo déficit público. Merecem um investimento como o de Itaipu, que deu certo, mas merecem também que erremos um programa nuclear em seu favor. Eu garanto que é tão rentável quanto telecomunicações e vai nos criar uma grande economia em arame farpado.

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