São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Imagens da violência deixam de sensibilizar

ESTER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O choque causado pela violência no jogo de futebol no último dia 20 reverbera até hoje. A extensão da comoção e a mobilização para diminuir a truculência das torcidas organizadas provavelmente tem algo a ver com a força das imagens transmitidas ao vivo pela televisão em pleno domingão. Cientes desse trunfo, as emissoras não se cansam de repetir "ad infinitum" a fatídica sequência sangrenta. Mas, por isso mesmo, perversamente, as imagens correm o risco de perder sua capacidade de sensibilizar.
A morte do torcedor Márcio Gasparin da Silva em consequência dos ferimentos, aumentou a indignação geral, e inspirou diversas iniciativas de combate à violência nos estádios. O incidente não pára de ser notícia. Há fatos novos a cada dia. No "Jornal Nacional", o cirurgião que cuidou da vítima explica. Mas as novas imagens vêm sempre acompanhadas da sequência virulenta, que quase como uma vinheta, pontua as notícias sobre o assunto.
Na última semana, o foragido Adalberto Benedito dos Santos, acusado pelo espancamento, se entregou à polícia. A repórter do "Aqui, Agora", expressando a ansiedade geral por entender o fenômeno selvagem, pergunta, como quem investiga um caso de laboratório: "Você está arrependido? Você visitaria a família de Mário? Porque depois de fugir você resolveu se entregar?".
Visivelmente transtornado, Adalberto demonstra arrependimento. Fala pouco. Sua voz está embargada. Nunca usou um revólver. Agradece o apoio dos pais e declara seu amor à namorada. Usa o termo "estado emocional" para definir o estado de espírito em que se encontrava quando partiu para a agressão do torcedor inimigo. Outro repórter tenta -sem sucesso- entrevistar familiares do rapaz na periferia de Santo André, cidade do ABC paulista. Adalberto chora em frente à câmera. E a televisão exibe ainda mais uma vez as imagens que o incriminam.
A repetição indiscriminada de imagens chocantes de espancamento lembra o caso Rodney King de Los Angeles. No incidente norte-americano, um videomaker amador flagrou a polícia em pleno abuso de autoridade. As imagens dessa câmera "indiscreta" foram transmitidas e repetidas indiscriminadamente para o país inteiro. Houve quebra-quebra e revolta nas comunidades negras. Mas, tempos depois, quando o caso foi a julgamento, o policial foi absolvido.
É claro que circunstâncias especiais favoreceram o policial acusado. Mas sem dúvida as mesmas imagens que ajudaram a provocar indignação pública, quando chegaram ao júri já eram carne de vaca. Talvez já não possuíssem a mesma capacidade de indignar.
Betinho e Chico Buarque se reuniram para lançar uma louvável campanha civil contra a violência nos estádios. Na qualidade de ministro dos esportes, Pelé prometeu em cadeia nacional, punir responsáveis por brigas, sejam eles menores de idade ou dirigentes esportivos. Seria bom se ao noticiar esses esforços, os telejornais resistissem à tentação sensacionalista de espremer uma vez mais a célebre cena do espancamento -que vai perdendo a força advinda de seu caráter inusitado e pode terminar por ganhar certo ar de normalidade.

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