São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Suprema irracionalidade

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA-Imagine um grupo de famílias miseráveis, esfomeadas. Tente visualizar agora uma montanha de 92 toneladas de macarrão, arroz e fubá.
Ponha famintos e mantimentos lado a lado. E responda: quantas bocas poderiam ser alimentadas? No município de Itapeva, um dos mais pobres do interior de São Paulo, nenhuma.
Há perto de 15 mil miseráveis em Itapeva. Há também, ao alcance de suas mãos, comida suficiente para rechear 4.530 cestas básicas.
Embora ambos, miseráveis e comida, estejam muito próximos há mais de um mês, nenhuma boca foi alimentada. Não pense que o pobre de Itapeva é avesso a arroz, a macarrão e a fubá.
Bem verdade que a ração não chega a entusiasmar. Mas a fome não tem paladar. O que separa os estômagos desafortunados de Itapeva de algumas poucas e magras refeições é mesmo a política.
Incumbida de distribuir as cestas que levam o selo do Comunidade Solidária, a Conab recebeu denúncia contra o prefeito Antônio Guilherme Brugnaro. Ele teria incluído na lista de candidatos às cestas funcionários nada necessitados da prefeitura.
Ao compor comissão para fiscalizar a distribuição dos mantimentos, o prefeito teria também excluído representante do comitê do Betinho e da área rural. A Conab enviou funcionário a Itapeva. Diz ter comprovado as anomalias.
O prefeito defende-se como pode. "Há pessoas pobres também na prefeitura", diz. "Quanto à comissão, eu anunciei no rádio. Não poderia credenciar quem não apareceu."
Guilherme Brugnaro virá hoje a Brasília, num último esforço para acertar os ponteiros com a Conab. Por precaução, os alimentos foram transferidos para Itaberá, uma cidade vizinha. À revelia do prefeito, que reteve as notas fiscais.
Na ausência de acordo, o prefeito diz que recorrerá à Justiça. Sabe Deus quanto tempo isso ainda vai durar. Não faria mal se as partes em litígio refletissem acerca dos efeitos perversos do tempo sobre a comida e da fome sobre o estômago humano.
Quem sabe ainda se possa evitar irracionalidade suprema de permitir a deterioração de alimentos ao lado de pessoas submetidas ao flagelo da fome.

Texto Anterior: Além da imaginação
Próximo Texto: Quase gente
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.