São Paulo, quinta-feira, 14 de setembro de 1995
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Amigo é pra essas coisas

MOACYR SCLIAR

Você vai achar que foi ironia do destino, meu amigo. Eu prefiro pensar que foi desígnio divino.
Confesso: num primeiro momento, me enganei. Achei que você estava sendo vítima de um assalto. Mas eu podia pensar diferente? Diga: eu podia pensar diferente? A gente se conhece há tantos anos, eu sempre tive você por um homem honesto. Tudo o que eu queria, quando segui seu carro, era salvar você de um assaltante. Por isso me arrisquei. Por isso avisei a polícia. Amigo é pra essas coisas.
E aí descubro que o assaltante era seu cúmplice. Que você não estava fugindo dele, estava fugindo com ele. E que vocês tinham acabado de roubar um banco. Você pode me argumentar que a situação está difícil, que ninguém está livre de dívidas e de inadimplência, e que você estava roubando o banco antes que o banco roubasse você.
Só que, para mim, essas desculpas não colam. O cara tem de ser honesto sempre. E é por isso que eu lhe digo: foi por desígnio divino que eu segui você. Entregando você à polícia, eu livrei você de uma vida de crime. Amigo é pra essas coisas.
Não pense que estou feliz. Gostaria que você pudesse voltar ao bom caminho sem passar por essa humilhação. E devo lhe dizer que também estou pagando um preço por isso.
Desde que você foi preso, comecei a seguir os meus amigos. Sim, porque se você, que era a imagem da honestidade, revelou-se um assaltante, ninguém está livre. De modo que passei a controlar todos. Amigo é pra essas coisas.
Faz dias que não trabalho, não vou para casa, nem como direito. Patrulho a cidade sem cessar, seguindo os conhecidos. E já descobri coisas incríveis.
Um dele, que sempre me pareceu machão, tem um caso com um travesti. Outro passa as noites bebendo num bar. Um terceiro joga.
Chocante, como você pode imaginar. É tanta transgressão, que tive de comprar um caderno para anotar tudo. E acho que vou até contratar um detetive para me ajudar.
A menos, naturalmente, que eu opte por me juntar aos amigos. Bem que eu tenho vontade de tomar um fogo de vez em quando, e poderia fazer isso junto com aquele que enfia a noite no bar. Podia jogar, podia até ver como é esse negócio de travesti.
Mas não sei, não. Será que amigo é pra essas coisas? Ou será que amigo é pra manter a moral de suas amizades? Você, que já tem experiência de transgressão, podia me dar uma dica a respeito. Telefone-me. Você conhece o número do meu celular, aquele que usei para avisar a polícia a seu respeito. Mas não deixe de me ligar. Preciso de um conselho. E você sabe que amigo é pra essas coisas.

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