São Paulo, quinta-feira, 14 de setembro de 1995
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Cirurgia da próstata é desnecessária... mesmo??

MIGUEL SROUGI
"PORQUE GADO A GENTE MARCA.

Tange, fere, engorda e mata.
Mas com gente é diferente.
(Geraldo Vandré)

Recentemente, o professor Afiz Sadi, da Escola Paulista de Medicina, publicou nesta Folha dois artigos sobre o câncer da próstata, emitindo conceitos pessoais um pouco extravagantes a respeito. Entre outras coisas, afirmava que o câncer da próstata nunca pode ser identificado em fases precoces, estando sempre espalhado pelo organismo quando diagnosticado, e que, em decorrência, a doença é incurável. Ademais, insistiu na idéia de que a cirurgia nesses casos é ineficiente e deveria ser proscrita, sendo preferível o tratamento medicamentoso hormonal, que pouparia o paciente das sequelas "devastadoras da operação.
Com o devido respeito a esse professor e mesmo considerando que controvérsias médicas são mais bem debatidas em periódicos científicos, julguei necessário expor pontos de vista de quem discorda dessas idéias, principalmente porque elas geraram sofrimento indevido em um grande número de pacientes portadores da doença.
Se as estatísticas norte-americanas forem válidas para o Brasil, e nessa área é provável que sejam, cerca de 150 mil brasileiros desenvolverão câncer da próstata em 1996 e aproximadamente 27 mil morrerão pela doença. Mais do que o número de mortes por Aids, cólera e meningite. Mesmo considerando esse índice desconfortável de óbitos, essas estatísticas indicam que um grupo apreciável de indivíduos sobreviverá à doença. Alguns por apresentarem tumores mais indolentes e que permanecem estacionários, alguns porque morrerão de outro mal e muitos por terem recebido tratamento eficiente. Que existe! E que cura! Tanto cura que três estudos recentes publicados pelos mais renomados especialistas norte-americanos na área, os doutores William Catalona, da Universidade de Washington, em St. Louis, Patrick Walsh, do John Hopkins Hospital, de Baltimore, e Malcom Bagshaw, da Universidade de Stanford, demonstraram que entre 60% e 85% dos pacientes com câncer localizado da próstata tratados por meio de cirurgia radical ou radioterapia apresentavam-se vivos e sem evidência da doença após dez anos de acompanhamento. Minha própria experiência é igualmente positiva. Depois de realizar cerca de 450 cirurgias radicais em pacientes com tumores malignos circunscritos à glândula prostática, muitas delas há mais de dez anos, pude comprovar que cerca de 20% desses casos faleceram por câncer ou por outro motivo, 10% encontram-se vivos e bem, recebendo alguma medicação antitumoral, e 70% estão curados, sem nenhum tratamento complementar. Muitos deles em grande esplendor físico e sem sequelas, alguns em posições públicas de destaque, dirigindo nossas vidas.
A concepção inexorável e fatalista do câncer de próstata exposta pelo professor Sadi choca-se também com observações feitas na Suécia, Inglaterra e Estados Unidos, onde grupos de pacientes com tumores da próstata de baixa malignidade foram acompanhados por muitos anos sem qualquer tratamento.
Esses estudos demonstraram que a disseminação subsequente do tumor ocorreu em somente 15% a 35% dos pacientes e óbitos pelo câncer foram observados em apenas 8% a 20% deles. Mesmo considerando a natureza tendenciosa dessas observações, nas quais apenas os casos de tumores mais favoráveis foram incluídos nos estudos, é inquestionável que alguns pacientes com câncer da próstata sobrevivem à doença sem nenhum tratamento, morrendo com o câncer, mas não por causa dele.
Outro ponto de vista do professor Sadi que merece reparos é o da pretensa agressividade da cirurgia e a propalada eficiência e inocuidade do tratamento hormonal. Os médicos bem formados sempre se preocuparam com as sequelas da chamada prostatectomia radical, intervenção que remove a próstata junto com todas as estruturas adjacentes e que permite a completa erradicação do tumor quando o mesmo é localizado. Cerca de 50% dos homens tratados com cirurgia tornam-se definitivamente impotentes e cerca de 3% deles desenvolvem descontrole e perdas urinárias molestas. E tanto essas porcentagens como a incidência de complicações intra-operatórias atingem valores proibitivos nas mãos de médicos menos habilitados. Mesmo assim, e sem menosprezar os efeitos indesejáveis da cirurgia, é importante que se enfatize que, algumas vezes, é a doença, e não a intervenção, que é agressiva. Nesses casos poderá não haver tempo para arrependimento se um tumor de natureza hostil, mas potencialmente curável, for abordado de modo conservador e, posteriormente, progredir no organismo.
Um fato é inquestionável. A prostatectomia radical é uma cirurgia complexa e, por isso, ela não deve ser executada por médicos pouco afeitos a ela. Nessa situação é melhor que o paciente seja tratado de forma mais conservadora, com hormônios ou com radioterapia, para evitar que uma intervenção imprópria cause mais mal do que a própria doença.
O tratamento hormonal, por sua vez, descrito pelo professor Sadi como uma alternativa que propicia boa qualidade de vida aos pacientes, está longe de ter essas características. Embora as medicações hormonais possam conferir muitos anos de vida ao portador de um câncer da próstata, elas não constituem a forma perfeita de tratamento da doença. Essas drogas não destroem, mas apenas paralisam o tumor, que pode permanecer quiescente por longos períodos, mas também pode se reativar em algum momento, com consequências óbvias. Ademais, os efeitos colaterais desses medicamentos não são inconsequentes. Todos, repito, todos os pacientes desenvolvem disfunção sexual, muitos evidenciam crescimento exagerado das mamas e algumas das medicações utilizadas podem produzir derrame cerebral, infarto do miocárdio e hepatite tóxica.
Mesmo considerando que o tratamento hormonal contribui para controlar a doença em um número incontável de homens, é importante que se entenda que a cirurgia e a radioterapia também constituem opções de mérito inquestionável para a cura de alguns pacientes. Isso é confirmado não apenas pelos números citados anteriormente, mas também por uma pesquisa realizada no Canadá pelo doutor Malcom Moore, que entrevistou 204 urologistas, radioterapeutas e oncologistas, perguntando-lhes como eles gostariam de ser tratados se um câncer localizado da próstata fosse neles identificado. Como mostra o quadro anexo, 92% dos especialistas optariam por tratamento cirúrgico ou radioterápico, e apenas 8% deles escolheriam, de início, o tratamento hormonal. Apesar da opinião divergente do professor Sadi, uma indagação óbvia se justifica: será que o que é bom para a maioria dos médicos também não será para quem não é médico?
Muitas dúvidas ainda habitam a mente daqueles que se dedicam ao estudo e tratamento do câncer da próstata. Alguns fatos, contudo, são inquestionáveis: um número substancial de pacientes pode ser curado do mal e, nesse sentido, o uso criterioso não apenas do tratamento hormonal, mas também da cirurgia e da radioterapia, tem uma importância inegável. A ciência médica tem realizado grandes esforços no sentido de estabelecer parâmetros que permitam escolher a melhor opção de tratamento para cada paciente. Isso atualmente é possível e todos os médicos com sabedoria, aqui incluídos um grande número de brasileiros, sabem identificar os tumores mais indolentes, que podem ser tratados de forma conservadora, e os casos com doença agressiva, mas ainda curável, que devem ser enfrentados de maneira radical. Mais importante ainda, todos os médicos de bom senso não se atam somente à doença e estão cientes da sua obrigação de respeitar o homem na sua integridade. Mutilações físicas e psicológicas não podem ser impostas aos pacientes que não precisam ou não as querem. Porque o doente é gente e não é gado. E também porque os médicos dignos preferem ser chamados de doutores e não de boiadeiros.

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