São Paulo, quinta-feira, 14 de setembro de 1995
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Quarteto de Tóquio reeduca audição

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma excelente formação de câmera não é apenas aquela que demonstra um padrão técnico impecável e o entrosamento absoluto entre seus solistas. Ela também precisa transpirar uma concepção original do repertório do qual eles se apropriam.
São esses alguns dos atributos que situam o Quarteto de Tóquio entre as duas dezenas de melhores conjuntos de cordas da atualidade.
O primeiro de seus dois recitais em São Paulo, anteontem no Teatro de Cultura Artística, foi uma eloquente e traumática prova de o quanto é saudável subverter certos hábitos de audição.
O quarteto não se apresentou com seu titular no estratégico posto de primeiro violino. Peter Oundjian, adoentado, vem sendo provisoriamente substituído pelo também canadense Andrew Dawes, que por sua vez assumiu, em 1981, o lugar de início ocupado por Koichiro Harada.
Para um conjunto de criação recente (1969), só uma cultura interna invejavelmente sólida impediria que se diluísse o pacto musical selado na Academia Toho de Música, no Japão, e que sobreviveu, a partir de 1978, quando os solistas se tornaram, nos Estados Unidos, bolsistas residentes da Universidade Yale.
Pois subsiste o mesmo encanto com que foram recebidas as primeiras gravações de Mozart feitas pelo conjunto em seus primeiros anos de carreira japonesa.
Na época, ele foi equiparado em particularidade interpretativa ao Quarteto Italiano (pico de virtuosidade nos anos 70) e ao Quarteto de Budapeste, ainda hoje acessível por seus registros em mono da década de 50.
O programa do primeiro recital em São Paulo foi montado com Mozart (1756-1791), Debussy (1862-1918) e Beethoven (1770-1827). Foram três portões de acesso a descobertas.
Elas consistiram, em primeiro lugar, em tomar Mozart como um visionário do romantismo e não como um obediente seguidor dos cânones clássicos. E tratava-se do "Quarteto nº 19", K.456, um dos seis dedicados a Haydn, o mestre do classicismo na genealogia mozartiana.
O adágio transpira um Schubert embrionário pela exploração enfática dos contrastes harmônicos. As passagens do grave para o agudo, do pianíssimo para o forte não são recursos correntes.
É um novo cromatismo que Dawes, Kikuei Ikeda (segundo violino), Kazuhide Isomura (viola) e Sadao Harada (violoncelo) procuram e conseguem demonstrar.
O prodígio se repete com Debussy e o único quarteto de sua extensa obra. Em lugar de situá-lo como uma interseção ambígua entre o romantismo e a música do século 20, ele foi tomado como um corpo gramatical próprio, sem débito algum para com o passado.
Um exemplo: as cordas do violoncelo, ao serem beliscadas, soavam como o presságio do papel de percussão que um Stravinski daria àquele instrumento.
Por fim, Beethoven, com o "Quarteto op. 59", o terceiro dos 17 que ele compôs. É uma partitura manhosa, que expõe no mesmo plano a melodia e a tecnicidade que surgia para os quartetos de corda -Beethoven impôs uma economia expressiva que prevaleceria até Brahms.
O Quarteto de Tóquio toma abertamente partido da técnica. Expõe a linguagem em estado quase bruto. O resultado é explosivo, belo como um ritual iniciático.
É como se os solistas nos demonstrassem que a hegemonia do melódico era um luxo ao qual Beethovem poderia se entregar ao final de sua obra de câmera, quando a nova linguagem já estivesse solidamente parida.
Bem para além do prazer da audição, os quatro solistas deixaram em São Paulo pistas que, se inteligentemente interpretadas, trarão um diferencial sutil no próprio hábito de se ouvir música.

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