São Paulo, sexta-feira, 15 de setembro de 1995
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'Cortina de Fumaça' quer reviver ética

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O filme "Cortina de Fumaça" (Smoke) entra em cartaz hoje em São Paulo depois de uma temporada "cult" em Nova York e de haver recebido o Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano.
A produção modesta dirigida pelo sino-americano Wayne Wang estreou em junho nos EUA e juntou fãs por dar ao espectador um elixir de ética e poesia em tempos de decomposição de valores.
Sua virtude está em encenar todos os ingredientes em moda no cinema norte-americano -violência, velocidade, stress, escatologia, acaso e verborréia- em nome da sensibilidade.
A resultante é paradoxal. Parece um filme de Quentin Tarantino, ágil e irônico. Mas é como se o espasmódico diretor de "Pulp Fiction" tivesse se convertido ao cristianismo; um Tarantino bonzinho.
Para sintetizar este bizarro remédio, Wang inspirou-se num conto de Natal do escritor norte-americano Paul Auster ("Auggie Wren's Christmas Story", "New York Times", 1990).
Gostou tanto da história da velhinha cega que recebe a visita natalina inesperada de Auggie (dono de uma tabacaria no Brooklyn de Nova York), que convidou Auster para fazer um roteiro baseado nela.
Auster entrecruzou outros quatro enredos à trama inicial e pôs Auggie no alvo da cena. Sua tabacaria vira o ponto de encontro dos personagens. Mas, ao contrário do Esteves de Fernando Pessoa no poema "Tabacaria", Auggie é um homem cheio de metafísica.
Wang e Auster fizeram até uma continuação (leia texto ao lado). Nas duas, Harvey Keitel interpreta Auggie com os olhos úmidos de emoção. Ele tem como passatempo fotografar a rua em frente à sua vitrine. Captura o fluxo do acaso e dos passantes. Auggie vive problemas: uma mulher que o explora, empregados preguiçosos e uma suposta filha viciada em crack.
Os clientes da loja são os amigos. O principal deles também tem seu quinhão de desdita. Trata-se do escritor Paul Benjamin, vivido pelo eterno bom rapaz William Hurt. A mulher dele morreu num assalto. Agora mora sozinho com a máquina de escrever.
A partir dessa situação, as ocorrências se atropelam como em "Pulp Fiction". Só que todos os sinais tarantinianos são invertidos. Nem São Francisco de Assis produziria seres tão pios.
Traficantes e ladrões batem em Benjamin, mas ele os perdoa. A filha viciada diz os maiores palavrões e escatologias a Auggie. Mas ele a perdoa. Até porque é perdoado pelo pivete Rashid (Harold Perrineau Jr.), despedido por ter transformado, sem querer, a tabacaria em aquário.
Claro, Rashid carrega um fardo pesado: não conhece o pai e é adotado por Benjamin. Foge em busca do fantasma e o encontra numa oficina mecânica. Chama-se Cole.
Com uma mão decepada e substituída por um gancho, Cole poderia passar por um daqueles meliantes de Tarantino, não fosse interpretado pelo eterno bondoso Forest Whitaker. Resultado: pai e filho se indultam mutuamente.
O filme vale por atuações fortes e texto em "sfumato", sutil, de Auster. Serve como guia prático para aqueles que querem, mas não conseguem, oferecer a outra face.

Filme: Cortina de Fumaça (Smoke)
Direção: Wayne Wang
Produção: EUA, 1995, 112 min.
Onde: Cinearte 2, Arouche A, Estação Lumière 1 e Espaço Banco Nacional 2

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