São Paulo, sexta-feira, 15 de setembro de 1995
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Católicos e evangélicos têm tudo em comum

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não tenho a menor simpatia pelos pastores da TV Record ou pelo bispo Edir Macedo. Ele tem um defeito na mão, é desagradável apertá-la; parece movida por uma mola secreta.
O defeito predispõe, entretanto, o interlocutor a uma atitude favorável. Depois da surpresa, redobra-se a cortesia a quem sofre de algum problema físico.
Edir Macedo é perseguido pela opinião pública; chegou a ser preso, numa operação sensacionalista e duvidosa do ponto de vista jurídico.
A Igreja Universal, que promete a cura da Aids pela intervenção divina, bem que poderia curar também o defeito de Edir Macedo nas mãos.
Brincadeiras à parte, creio que toda a polêmica envolvendo a Igreja Universal, a Igreja Católica Romana, a TV Record e a TV Globo merece alguns esclarecimentos.
São chocantes, sem dúvida, as promessas de cura e a avidez por dinheiro da Igreja Universal. Mas, por mais que eu pense, não consigo ver nenhuma diferença entre as novas seitas evangélicas e a Igreja Católica.
A Igreja Católica exerce, há séculos, o mesmo ofício dos pastores da Record. E sempre foi regiamente paga. Imagino o escândalo quando Edir Macedo comprar um banco. Mas o Vaticano tem o seu. Padres sempre exigiram contribuições em dinheiro. O dízimo não é invenção dos evangélicos. Muitos bispos e cardeais viveram sempre no mais extremo luxo. Edir Macedo não usa tiaras de pérolas na cabeça, por enquanto.
Toda igreja promete o que não pode cumprir. E cobra por isso. Cito a frase de um empresário que me ensinou muita coisa: "O melhor negócio do mundo é a religião. Você cobra dinheiro de uma pessoa e em troca lhe dá a vida eterna. E quem não tiver recebido o que você prometeu, não volta para reclamar."
A Igreja Católica já acumulou o suficiente e já sofreu críticas demais, foi domesticada pela civilização ocidental. Hoje em dia, até notícias de milagres da Virgem passam por investigação criteriosa do Vaticano.
A Igreja Universal está apenas num estágio mais bruto, mais selvagem do processo. O teor das promessas e o teor da cupidez estão num estado puro. Isso torna os pastores mais desagradáveis esteticamente, mas no fundo se trata da mesma coisa: alimentar fantasias, promover consolações e sustentar mitos. É o que faz a Globo.
Imagino que o ódio à Igreja Universal se deva a uma outra razão. Não é tanto o ódio aos mistificadores, mas a raiva diante de uma credulidade que, depois de tantas conquistas científicas, de tantos avanços iluministas, continua a ser forte nas camadas populares.
Pensava-se que o adversário maior do Iluminismo fosse Igreja Católica. Esta, bastante tímida e totalmente derrotada, admite a ciência, a razão e se acomoda num nicho tradicionalista, tolerante, mais ou menos sofisticado. Seus dogmas e crenças se beneficiam de milênios de pensamento teológico.
O espantoso é ver formas de religião primitivas obtendo um sucesso cada vez maior, ao passo que todos os esforços católicos no sentido de se expurgar de absurdos e fanatismos se vêem, afinal, pouquíssimo recompensados.
O assunto é muito amplo, mas gostaria de criticar algumas idéias correntes a respeito da decadência do catolicismo e do progresso dos evangélicos.
Por exemplo: acho errado dizer que o sucesso dos evangélicos se deve ao fato de a Igreja Católica ter descurado das dimensões místicas e espirituais do homem.
O argumento foi muito lembrado nos tempos da Teologia da Libertação. Dizia-se que a Igreja Católica estava cuidando só da miséria e do aspecto material, e que isso abria campo para novos misticismos.
Isso não é verdade. As seitas evangélicas podem ser tudo, mas não são nada místicas. Basta ver um programa da Record.
Nunca, mas nunca mesmo, se fala em despossessão da riqueza material, em vida eterna, em salvação depois da morte.
O que os pastores da Record asseguram é, ao contrário, prosperidade terrena. Trabalho, disciplina contra as tentações demoníacas da droga e do álcool.
Propõem-se a dar ordem e sentido às obrigações cotidianas, profissionais, familiares, físicas. São a favor do esporte contra a droga, da fidelidade contra a Aids, da água contra a pinga.
Não há nenhum misticismo nisso. Não há referência à pobreza e à desgraça como passaportes para a vida eterna.
As seitas evangélicas são tão "pragmáticas" e materiais quanto a doutrina católica de hoje em dia. A diferença está no seguinte.
A Igreja Católica ainda confia numa espécie de salvação coletiva numa reordenação global, numa sociedade convertida aos princípios cristãos.
Os evangélicos pensam nos termos de uma salvação individual, de um sucesso egoísta. Claro que essa última mensagem é menos utópica e tem forças mais apelativas para o indivíduo.
Acrescente-se a isso o poder coletivo dos rituais evangélicos. Ir a uma missa católica é assistir a um ritual egípcio, no qual nem o celebrante nem os fiéis têm o menor entusiasmo pela cena.
As seitas protestantes gritam de alegria, cada otário se contamina com a cegueira dos demais; isso é voltagem histérica, carência pessoal, coisas que funcionam melhor nas camadas ignorantes da população.
Igreja Católica e Igreja Universal concordam todavia num ponto: o da disciplina contra a liberdade. Puritanismo sexual, repulsa aos prazeres da carne. Há no ser humano, quero crer, uma vontade extrema de ser dominado. Ordem, geometria, regulação ajudam a administrar a vida e a dar-lhe sentido.
O conservadorismo sexual dos evangélicos aposta nessa tendência. João Paulo 2º também. Há uma desconfiança geral frente ao poder anárquico do princípio do prazer.
A ordem capitalista, como é sabido, tem no princípio do prazer (preguiça, sindicalismo, renda mínima, drogas) seu maior inimigo. E tem no desemprego em massa seu contrapeso.
Trata-se de mobilizar os derrotados, drogados, adúlteros, alcoólatras, desempregados para a fé.
Católico ou evangélico, muçulmana ou budista, pouco importa. A outra alternativa é a diversão alienante, a estupidização televisiva, o zumbizismo da televisão, dos videogames, das novelas da Globo.
Esse é o real objeto da disputa entre Record e Globo. A Globo é mais moderna, porque sabe da impossibilidade das dificuldades do sucesso pessoal, das recompensas protestantes à vocação profissional e se encarrega de um ópio do povo mais poderoso do que a própria religião; um ópio sem recompensa.
Mas dá no mesmo. Globo, Record, igrejas: que briguem quanto quiserem.
Que importância tem se é o Palmeiras, o Corinthians ou o São Paulo quem ganhou o campeonato?

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