São Paulo, sexta-feira, 15 de setembro de 1995
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Reforma tributária, federalismo e globalização

ANTONIO KANDIR

Até aqui o debate sobre a reforma tributária tem sido marcado por mal-entendidos. Para tentar desfazê-los em parte, começo lembrando que os sistemas tributários são criaturas históricas e não construções arbitrárias que se possam moldar conforme preferências individuais.
Identificar o solo histórico específico de um sistema tributário é, assim, o primeiro passo para apresentar e avaliar propostas de reforma com um mínimo de aderência à realidade objetiva.
De modo esquemático, o Brasil conheceu, depois do Império, cinco "ciclos" de longa duração no que respeita à sua estrutura tributária. Todos eles inaugurados em momentos de ruptura ou inflexão política e referidos de modo fundamental à questão federativa.
1º Ciclo (1891-1930). No Império, cerca de 80% do total das receitas tributárias concentravam-se em mãos do governo central. À concentração de receitas tributárias correspondia uma estrutura política altamente centralizada. Contra esta, deu-se a luta pela República. A reforma tributária consignada na Constituição de 1891 foi expressão de forte impulso descentralizador, cujos efeitos perduraram por quase 40 anos, nos marcos de uma economia agrário-exportadora.
2º Ciclo (1930-1945). A segunda grande mudança na estrutura tributária iniciou-se em 1930 e completou-se em 1937. Durante o Estado Novo (1937-1945), o impulso de centralização deflagrado em 1930 atinge o auge. Os governadores eleitos pelas Assembléias estaduais depois da Constituição de 1934 cedem lugar aos interventores.
Os Estados perdem autonomia em matéria tributária, extinguem-se os impostos interestaduais e a União centraliza as competências tributárias. A ruptura definitiva com o modelo de 1891 corresponde ao impulso de industrialização que então tomava corpo sob a liderança do governo central.
3º Ciclo (1946-1964). A terceira mudança de importância ocorre ao final do Estado Novo. Não houve aí retorno ao modelo tributário da Constituição de 1891. As oligarquias regionais já não tinham mais o peso de antes. Os interesses já estavam moldados por uma economia nacional integrada, em que o governo federal assumia papel de promotor do desenvolvimento industrial.
A Constituição de 1946 foi a resposta que se encontrou naquele momento para o desafio de restabelecer a federação e a democracia sem descontinuidade com a estratégia de desenvolvimento industrial por substituição de importações.
4º Ciclo (1964-1988). A quarta mudança fundamental do sistema tributário ocorreu sob o regime implantado em março de 1964 e correspondeu à vitória política de interesses ligados à modernização autoritária do capitalismo brasileiro. O problema da internacionalização da economia brasileira aparece pela primeira vez, mas sem que houvesse ruptura profunda com o "modelo de substituição de importações" (as características do sistema tributário são ainda de uma economia fechada). A partir de 1968, com o endurecimento do regime, a reforma tributária promovida três anos antes ganha características marcadamente centralizadoras.
5º Ciclo (1988 - ). A quinta mudança vem com o fim do regime autoritário e a Constituição de 1988, sem que, no entanto, se modificasse o núcleo das inovações mais bem-sucedidas da reforma anterior. As mudanças fundamentais promovidas pelos constituintes de 1988 consistiram em ampliar as competências tributárias de Estados e municípios e, principalmente, elevar o percentual de impostos federais transferido para Estados e municípios por meio dos Fundos de Participação. Tratou-se do mais vigoroso impulso de descentralização de receitas tributárias depois da implantação da República.
Vivemos hoje, pois, no ciclo aberto ao final do regime autoritário que, a seu modo, inscreve a descentralização de modo definitivo na estrutura federativa do país. As características desse ciclo estabelecem um dos condicionantes básicos da reforma tributária. O outro condicionante é a globalização.
No campo tributário, como em outros, a Constituição de 1988 reflete duas características do movimento de redemocratização do país: alta sensibilidade em relação à questão federativa, com ênfase na descentralização de receitas tributárias, e tênue percepção quanto às exigências colocadas pelo movimento de globalização da economia mundial.
Vem daí que o grande desafio da reforma tributária hoje seja tornar compatíveis dois objetivos:
1) reformar o sistema tributário de modo a favorecer a integração competitiva do Brasil na economia mundial.
2) reformar o sistema tributário sem produzir retrocesso no impulso descentralizador decorrente do fim do regime autoritário. De um lado, porque a centralização é, no Brasil, incompatível com o regime democrático. De outro, porque, num país de realidades regionais heterogêneas, extensão continental e sociedade cada vez mais complexa e reivindicante, a melhoria dos serviços públicos está indissoluvelmente ligada à descentralização.
Segue-se que qualquer proposta de reforma tributária que, sob a forma aparente da simplificação radical, implique retrocesso na descentralização, é não apenas inviável politicamente, como indesejável. É o caso de propostas que fazem da redução drástica de tributos sua bandeira e seu fetiche, essas sim concentradoras da competência de tributar nas mãos da União e, portanto, incompatíveis com a reorganização positiva do federalismo brasileiro.
Em resumo, a questão fundamental da reforma tributária hoje é promover mudanças que, simplificando e racionalizando o sistema, sem simplismos incompatíveis com a estrutura federativa, estimulem o investimento produtivo na perspectiva de integração crescente da economia brasileira à economia global.
Quais as mudanças específicas para tornar esse objetivo realidade concreta é o tema que irei abordar em outro artigo, na próxima sexta-feira, nesta mesma seção da Folha.

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