São Paulo, sexta-feira, 15 de setembro de 1995
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Declaração de guerra

FREI BETTO

Enfim o Brasil chegou ao Primeiro Mundo. Acaba de ser declarada a guerra religiosa entre evangélicos e católicos, com cobertura nacional em rede de TV. Já não há razão para invejarmos os conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda, entre católicos e muçulmanos no Líbano (felizmente encerrado) ou entre cristãos e muçulmanos nos novos territórios da ex-Iugoslávia.
Ironias à parte, toda guerra tem seu estopim na troca de ofensas. Isso é comum nesse estágio incivilizado em que nos encontramos. Até senadores da República gostam de usar o fax como certos terroristas usam o correio, remetendo textos explosivos que, se não decepam mãos, ferem a dignidade alheia.
Espantoso é que a difamação se proceda em nome de Deus! Foi assim que teve início a Inquisição. A intolerância engendrou suspeitas, estas esculpiram hereges que, segregados e condenados, alimentaram fogueiras. Como bem narra Dostoievski na "Lenda do Grande Inquisidor", em "Os Irmãos Karamazov", o Deus de amor cedeu lugar ao deus carbonário, o perdão foi sobrepujado pela excomunhão e, onde havia liberdade, impôs-se a disciplina.
Toda pessoa religiosa -cristã, muçulmana, judia etc.- entrega-se ao fanatismo quando julga que Deus precisa de quem O defenda com unhas e dentes. Ora, Deus tem mais o que fazer do que preocupar-se com as nossas disputas paroquiais. Deve mesmo achar ridícula essa divisão dos fiéis em várias religiões e dos cristãos em tantas igrejas.
A morte, contudo, incumbe-se de levar todos nós, sem exceção, ao mesmo lugar, face a face com o mesmo Deus, ainda que agora o tratemos por Javé ou Jesus, Brahma ou Mavutsinim, como um mesmo homem é tratado de pai e irmão, cunhado e compadre, tio e filho.
Um dos pecados denunciados pelo Novo Testamento é a simonia: acumular dinheiro em nome de Deus (Atos dos Apóstolos 8, 9-25). Em todas as religiões há fiéis íntegros e corruptos.
Se entre os evangélicos há quem aja convencido de que "templo é dinheiro", como diz José Simão, o que dizer do Vaticano empenhado na venda de indulgências para erguer seus magníficos palácios? Quem pode atirar a primeira pedra? Será que as almas têm recebido os óbolos depositados nos cofres "para as almas" instalados em igrejas pelo Brasil afora?
Se as igrejas se locupletam sem prestar contas à nação a culpa é da legislação vigente, que não exige que abram suas finanças à Receita Federal como ocorre com empresas e pessoas físicas dotadas de renda.
De fato, a guerra não é religiosa, é política. É uma guerra de posição, para ocupar espaços de poder. Estão em jogo diferentes modelos de sociedade. Há igrejas evangélicas atiçando a caldeira do fundamentalismo, investindo em partidos e políticos, convencidas de que devem usufruir seu momento histórico de cristandade medieval, quando a Igreja Católica mantinha hegemonia sobre o conjunto da sociedade.
Também na Igreja Católica há quem se ressinta do fato de os valores proclamados pela doutrina romana não se imporem mais à cultura pluralista e secular que hoje se respira. Em suma, na crise da modernidade, alguns apostam no retrocesso, avessos à inculturação, ao pluralismo e à autonomia da política e da ciência.
Quão decadente é essa guerrinha de egos inflados! Na 25ª hora, diz o evangelho de Mateus, o Senhor não nos pedirá contas dos bens da Igreja ou de nossas aplicações no mercado financeiro e sim de quantas vezes demos de comer aos famintos, de beber aos sedentos e se nos empenhamos em libertar os oprimidos (Mateus 25, 31-44). Serve a Deus quem serve à vida.
Jogar agora água na fervura é evitar o risco de um fiel fanático decidir, amanhã, apressar a vontade divina em relação a vidas alheias e embrenhar-se por aventuras terroristas.
Jesus não pede que não tenhamos inimigos. Mas que sejamos capazes de amá-los (Mateus 5, 44), o que implica, no mínimo, não confundir diferença com divergência nem lançar mão da censura e da injúria para satanizar os nossos desafetos.

CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO (FREI BETTO), 51, frade dominicano e escritor, é membro da Fundação Sueca de Direitos Humanos e autor de "A Obra do Artista -Uma Visão Holística do Universo" (Ed. Ática), entre outros livros.

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