São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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O dia em que escapei da fogueira

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Queima! Queima! Queima!"
Quando ouvi o grito inquisitorial da multidão, pensei: "Não saio vivo desta." O medo fez meus braços adormecerem e os joelhos quase dobrarem. Tentei, mas não consegui parar de tremer.
Eram 21h40 de terça-feira, dia 12 de setembro. Estava em um dos templos da Igreja Universal, no bairro paulistano do Brás.
O pastor Júlio César -os fiéis o chamavam assim- comandava o culto que já durava uma hora e meia. Cegos, paralíticos, tuberculosos, doentes de toda a sorte engrossavam a massa de aproximadamente 3.000 pessoas que se aglomerava diante do altar.
Queriam a cura. "E a cura virá", prometia o pastor com insistência, de microfone em punho. "Basta que vocês abandonem o deus da macumba, o deus dos católicos. Porque atrás do pai-de-santo, atrás da Virgem Maria está o demônio da doença."
Sem me identificar como repórter, acompanhava a cerimônia desde o início. Pretendia observar e depois me apresentar ao pastor.
Não trazia gravador nem câmera fotográfica. No bolso, carregava apenas papel e caneta. Sabia que a Universal anda cismada com os meios de comunicação -principalmente depois que a Globo lançou a minissérie "Decadência", tida como ofensiva pelos evangélicos. Se me identificasse, poderiam me impedir de ver o culto.
Passava um pouco das 21h30 quando o pastor se pôs a recolher o dízimo. Após entregar o dinheiro, alguns fiéis colocavam bilhetes sobre o altar. Eram pedidos que anotavam ali mesmo, em pedacinhos de papel.
Aproveitei a deixa para também anotar. Até aquele momento, não escrevera nada, com receio de chamar a atenção. Mas agora me sentia seguro. Rabisquei rapidamente meia dúzia de informações que temia esquecer.
Mal acabei de tomar nota, veio o susto. O pastor, distante uns 50 metros, apontou para mim e berrou: "Quem é você?" Imediatamente, cinco obreiros arrancaram o papel de minhas mãos. Fiquei perplexo. Como me descobriram entre tantas pessoas que anotavam? Que gesto me denunciou?
Um dos obreiros levou o papel para o pastor, que continuou berrando: "Quem é você? Repórter da Globo? Por que vocês só chegam na hora do dízimo? Por que não mostram nossas curas, nossas obras assistenciais?"
Os milhares de fiéis aplaudiram, irados. O pastor se animou e começou a ler minhas anotações: "Vejam o que o rapaz escreveu -que pedi R$ 500 para vocês. Ele não entende a importância do dízimo. É um covarde, o enviado de Satanás. Vamos humilhá-lo."
Foi, então, que os fiéis gritaram em fúria: "Queima! Queima! Queima!" Dezenas de obreiros me cercaram. Um deles segurou meu braço e perguntou: "Você é jornalista? Conta logo." Tive medo de confirmar: "Não, sou estudante."
O pastor, cada vez mais empolgado, ordenou: "Vamos expulsá-lo do templo." Os obreiros me empurraram em direção à multidão. "Queima! Queima! Queima!", insistiam os fiéis, como costumam fazer durante os cultos, quando julgam que o demônio possuiu alguém.
Achei que iriam me linchar. Olhei em volta e percebi que um dos obreiros estava tão assustado quanto eu. Pedi que me protegesse. Ele me abraçou e, caminhando lentamente, implorando calma à multidão, conseguiu me tirar dali.
Antes de me deixar partir, arriscou uma bravata: "Você acha que pode mexer com a gente? Nem o Roberto Marinho (presidente das Organizações Globo) nos intimida. A Universal é uma potência."
Voltei ao templo na tarde de quinta-feira com o fotógrafo Luiz Novaes. Desta vez, usava o crachá de repórter. Insisti, mas o pastor Júlio César não quis me atender.
Procurei, no dia seguinte, o pastor e radialista Ronaldo Didini, porta-voz informal da igreja. Por telefone, ele se desculpou pelo que aconteceu. "Foi uma exceção. Os ânimos estão muito acirrados por causa dos ataques que a Globo vem nos fazendo."

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