São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Balé mecânico na na era eletrônica

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os avanços da tecnologia na Era Eletrônica, que a humanidade já começou a vivenciar, não influem apenas no futuro, mas também no passado, permitindo avaliar com olhos novos, quando não recuperar ou regenerar, informações que, à sua época, não puderam se patentear totalmente e acabaram bloqueadas, talvez por estarem à frente do seu tempo, como antenas premonitoras da raça (Ezra Pound: "artists are the antennae of the race).
Este parece ser o caso do compositor americano George Antheil, cujas concepções inovadoras, sem possibilidade de veiculação adequada e sem estímulo receptivo, findaram por conduzi-lo ao impasse e à anulação artística, depois de ter protagonizado um dos mais notáveis "fracassos (eu ia dizendo "sucessos") "de escândalo da música moderna com seu "Ballet Mécanique", nos privilegiados anos 20.
O que suscita estas considerações é a "recriação digital, em 1989, pelo regente e pesquisador Maurice Peress e uma excelente equipe de músicos, do concerto que Antheil realizou em 10 de abril de 1927, no Carnegie Hall, e que abrangia, além das versões completas do "Ballet Mécanique" e da "Sinfonia de Jazz" (ambos de 1925), a "Segunda Sonata para Violino, Piano e Tambor" (1923) e o "Quarteto para Cordas nº 1" (1924). O trabalho de recuperação musical está documentado, como "world première recording, num CD do selo Music Masters, de 1992. No folheto que acompanha o compacto se afirma que, tendo causado tumulto em 1926 no Théâtre des Champs-Élysées de Paris, e, no ano seguinte, no Carnegie Hall, tornando-se um dos acontecimentos mais controvertidos da história da música americana, o "Ballet Mécanique" não teve menhuma outra audição pública por 62 anos, até que Maurice Peress localizasse a partitura original e reencenasse o concerto de 1927 no mesmo Carnegie Hall, em 12 de julho de 1989.
A afirmação comporta uma ressalva. Pelo menos duas apresentações intercorreram. A primeira se deu em Nova York, em 20 de fevereiro de 1954, sob a regência de Carlos Surinach, com a presença do autor, e foi muito aplaudida, tendo parecido a um crítico do "New York Times" "a versão ampliada de um gamelão balinês, conforme o relato de Gilbert Chase ("America's Music From the Pilgrims to the Present", 1955, traduzida em português com o título "Do Salmo ao Jazz", 1957). A segunda teve lugar em Amsterdam, em 1976, sob a prestigiosa regência de Reinbert de Leeuw, com o Grupo de Sopros Holandês, em 1976, num concerto que compreendeu também a "Sinfonia de Jazz" e as "Sonatas para Violino e Piano" de 1923. O concerto foi gravado ao vivo pela Harlekijn num disco que, por milagre, chegou ao Brasil, reprensado pela Telefunken-Chantecler em 1978. O que acontece -evidencia-se agora- é que as duas apresentações constituem versões abreviadas (com 15 ou 18 minutos em lugar de meia hora de duração!) e com instrumentação incompleta. Num e noutro caso os músicos se basearam na versão reduzida e amaciada que o próprio Antheil elaborou em 1952 (1). E isso faz uma grande diferença.
A partitura original do "Ballet" chegou a prever o uso de 16 pianos mecânicos sincronizados a um único mecanismo de rolos (depois o autor se contentou com uma pianola e diversos pianos), além de sinos elétricos com 11 diferentes alturas, sirenes e hélices de avião. Nenhuma das apresentações anteriores à de Maurice Peress pôde realizar integralmente a orquestração prevista. A versão abreviada suprimiu o piano mecânico e encurtou drasticamente a peça, eliminando os "loopings musicais e as longas pausas da parte final. Nem a "Sinfonia de Jazz" passou incólume à revisão do compositor arrependido. A orquestração inicial de 1920, concebida pelo "band-leader Paul Whiteman, era francamente jazzística, com saxofones, oboé, metais de jazz, banjo, tuba, bateria, xilofone e uma pequena seção de cordas. No concerto do Carnegie Hall a obra, que incorporava citações de Scott Joplin e Stravinski, fora executada pela orquestra negra de jazz de W.C. Handy com Antheil ao piano. Pois em 1955 Antheil normatizou a partitura, recauchutando-a para um conjunto tradicional de sopros e reduzindo a peça em 50% (passou a ter uma duração de cerca de seis minutos e meio). Só a "recriação de Peress veio restaurar-lhe a extensão e também a sonoridade jazzística original, muito mais agressiva e pertinente.
Com os recursos tecnológicos da eletrônica atual, Maurice Peress pôde aproximar-se com muito maior propriedade da concepção inicial do "Ballet", integrando com nitidez à orquestração a seção pianística (com uma pianola e seis pianos), as 11 alturas de sinos elétricos e o ruído das hélices de avião. Foi, nesse passo, auxiliado por Gordon Gotlieb, um percussionista especializado em computação, que "sampleou diversos sinos ligados por uma interface "midi a um teclado elétrico e registrou com o mesmo processo o som gravado de aviões da época em três diferentes alturas.
Portanto, o que, a rigor, se deve dizer é que esta é a primeira vez, após 62 anos, em que se ouviu cabalmente essa música "futurista, da era-da-máquina, inspirada no rag-time, de uma complexidade que ultrapassa as capacidades humanas de execução, para usar palavras do regente. Uma audição privilegiada de que o próprio Antheil jamais chegou a desfrutar, já que, pelo menos no que concerne ao "Ballet", nem mesmo a apresentação do Carnegie Hall parece ter seguido à risca todas as prescrições da partitura.
Assim equacionada, a importância desta "primeiríssima audição é grande. Ela traz novas luzes sobre as idéias musicais de Antheil, justificando o entusiasmo incomum que Ezra Pound manifestou por elas. Infunde-lhes muito maior brilho e consistência e redime, definitamente, o compositor do desprezo a que foi relegado, em parte devido à imprevista guinada de rumos de sua carreira, a partir do concerto-fracasso de 1927.
Afinal, outros, que por motivos diversos, abandonaram os extremismos iniciais -assim Shostakovski, Hindemith ou Eisler (que, como Antheil, acabou em Hollywood)- têm sido tratados com mais condescendência. Por que se deveria menosprezar o que Antheil fez de extraordinário antes da queda? Talvez a consciência da medida da impraticabilidade da execução de sua obra, tornada evidente agora, pela restauração do seu trabalho, possa, senão justificar, pelo menos ajudar a entender a enigmática e tão deplorada deserção do compositor. Mais admiráveis serão, por certo, aqueles que, como Varèse, se mantiverem coerentes e irredutíveis, ao preço até do silêncio. Sem meios para levar à prática os seus projetos pré-eletrônicos, o visionário Varèse ficou praticamente 18 anos sem compor e só voltou à cena em 1954 para a apresentação de "Déserts", sobrevivendo à amargura e à obscuridade para ser consagrado pelos melhores músicos da nova geração. Morreu, dignificado por essa recepção qualificada, aos 82 anos, em 1965, em Nova York, a mesma cidade em que Antheil falecera, seis anos antes, com 59 anos, esquecido e desprestigiado por vanguardas e retaguardas, apesar de haver-se proclamado um dia "The Bad Boy of Music -título da autobiografia que publicou em 1945.
Nascido em Trenton, New Jersey, em 1900, iniciou carreira fulgurante e tumultuária de "pianista-compositor ultramoderno em alguns dos principais centros europeus com apenas 22 anos. Em Paris, foi acolhido e promovido por Ezra Pound. Conheceram-se em 1923, num dos turbulentos concertos de Antheil em Paris, ao qual compareceu Satie, que aplaudia, entre as vaias, gritando: "Quel précision! Quel précision! Bravo! Bravo!. "O James Cagney da música -escreveu o poeta- voltou de Berlim sem um tostão no bolso e com o maior recorde de distúrbios, fiascos e vaias jamais obtido por um concertista na Alemanha. Um homem de talento, cheio de talento, um compositor em defesa do qual eu haveria de publicar um livro. O caos continuou em Paris. O Théâtre des Champs-Elysées, com gente subindo pelas paredes, à espera de um espetáculo de variedades, virou um manicômio cinco minutos depois Antheil estava ao piano. O livro que Pound escreveu chamou-se "Antheil and the Treatise of Harmony" (1924).

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