São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Balé mecânico na era eletrônico

AUGUSTO DE CAMPOS

Em algumas de suas apresentações, Antheil levava um revólver que colocava em cima do piano, para atemorizar os seus contestadores. Daí, talvez, a expressão do poeta -"Cagney da música-, que o próprio Antheil transformaria depois no "bad boy da sua autobiografia. Antheil era, além disso, de baixa estatura, o que acentuava a analogia com o famoso gângster do cinema.
Suas estripulias não paravam nos concertos: uma fotografia da época registra o jovem músico americano, que às vezes usava o cabelo, inconvencionalmente, em franja sobre a testa, entrando pela janela em seu quarto. Em "The Crazy Years: Paris in the Twenties" (1991) -"Os Anos Loucos: Paris na Década de 20", na tradução brasileira, da José Olympio Editora-, conta William Wiser que Sylvia Beach, a proprietária da famosa livraria Shakespeare & Company, encantou-se tanto com Antheil e sua mulher, que consentiu que eles se instalassem no pequeno apartamento em cima da loja, no qual ele penetrava, quando esquecia a chave, pisando na tabuleta da livraria para alcançar a sacada... Antheil auxiliou Pound na orquestração da ópera "O Testamento de Villon" e compôs para a amante e depois companheira de Pound, a violinista americana Olga Rudge, as primeiras sonatas para violino e piano, atuando com esta em concertos de suas músicas entre 1923 e 1925.
O "Ballet Mécanique" foi concebido inicialmente como trilha sonora para o filme homônimo do pintor Fernand Léger, em 1923, por sugestão de Pound, que participava da aventura cinematográfica não como poeta, mas ao lado do fotógrafo americano Alvin Coburn, como co-inventor do "vortoscópio -um caleidoscópio "cubista que permitia fragmentar especularmente as imagens por meio de um prisma colocado diante das lentes da câmara. No ano seguinte, o compositor começou a retrabalhar e expandir a obra, que veio a ter uma anteestréia privada para um grupo de convidados (entre os quais -além de Pound, obviamente-, Hemingway, Joyce e Margaret Anderson), na Salle Pleyel, em 16 de setembro de 1924. Essa primeira apresentação era para solo de pianola, ou "pleyela, como a batizou Pound. A estréia ocorreu em 19 de junho de 1926, no Théâtre des Champs Élysées, com a presença, entre outros, de Pound, Joyce, Milhaud, Duchamp... (O mesmo teatro que já fora palco dos tumultos que acolheram a "Sagração da Primavera" em 1913 e que voltaria, algumas décadas depois, em 1954, a se convulsionar com os estrondosos ruídos de fábrica, em fita gravada, que Varèse interpolou em sua composição "Déserts", provocando análoga indignação do público).
Àquela altura -esclarece Maurice Peress- a partitura do "Ballet Mécanique" tinha 399 páginas compactas, e o compositor acrescera à música para pianola partes para dois pianos (depois multiplicados nas performances), três xilofones, dois tambores-baixo, gongos, uma sirene, sinos elétricos de 11 alturas e três hélices de avião (duas de madeira de diferentes tamanhos e uma de metal).
As apresentações se tornaram legendárias e as descrições, nem sempre coincidentes e pontuais, que delas ficaram, têm um colorido anedótico que deixa transparecer o clima emocional que despertaram. Diz William Wiser (enganando-se de ano): "A obra mais famosa -ou infame- de Antheil foi o "Ballet Méchanique", apresentado em 1925 na Salle Pleyel sob a direção de Bravy Imbs, aluno de Antheil, pois o compositor estava fora de Paris na época e a música foi gravada em rolos de piano. James Joyce, embora não fosse um amante da música moderna, assistiu ao concerto, opinou que a composição lembrava muito Mozart e até pediu para ouvir o segundo rolo de novo. Uma apresentação do "Ballet Mecánique" em escala integral incluiu oito pianos bem como um motor de avião: quando este foi ligado, as perucas das mulheres na platéia, segundo se disse, teriam voado longe, mas o mais provável é que isso tenha acontecido com seus chapéus. Mais uma vez, a polícia foi obrigada a controlar o tumulto.
Sylvia Beach, testemunha ocular, relembra um pouco diversamente a estréia pública do espetáculo em 1926 no Théâtre des Champs Élysées: "O público foi extraordinariamente afetado pelo 'Ballet Mécanique'. A música foi abafada por gritos que partiam de todos os cantos do teatro. Os contraditores da platéia foram respondidos pelos defensores das galerias; a voz de Ezra sobrepujava as outras, e alguém disse tê-lo visto dependurado de cabeça para baixo do alto da galeria. Viam-se pessoas se esbofeteando, ouviam-se os brados, mas nenhuma nota do 'Ballet Mécanique', que, a julgar pelos gestos dos executantes, prosseguia sem parar. Mas o público enfurecido calou-se subitamente quando as hélices de avião previstas na partitura começaram a roncar e levantaram uma ventania que, segundo Stuart Gilbert, arrancou a peruca de um homem que estava perto dele e a arremessou para o fundo da sala".
Antheil, que foi um dos pianistas, tem esta vívida recordação da estréia: "Aos primeiros acordes do 'Ballet Mécanique' só faltou o telhado se levantar do teto! Algumas pessoas literalmente caíram para trás com o abalo gigantesco! O restante dos nossos convidados torcia-se como sardinhas vivas numa lata; os pianos acima, abaixo ou do lado dos seus ouvidos estrondeavam poderosamente numa inusitada sincronização. Mais recentemente, à longa distância dos fatos, o crítico Roderich Fuhrman saiu-se com estas imagens fantásticas ou fantasiosas sobre o espetáculo: "No salão se encontravam oito pianos de cauda, na peça contígua e sobre a escada estavam instalados um piano mecânico e a percussão. Vladimir Golschman -de pé, à frente do piano central- dirigia a execução. O público, composto de quase 200 convidados, estava deitado sobre ou sob os pianos, se não à sua volta, e certas pessoas preferiram dependurar-se nos lustres. O ruído de uma hélice de avião serviu de pedal a tudo. A noite atingiu o seu ponto culminante -como conta Antheil, não sem orgulho- com a celebração de uma 'party', no decorrer da qual a própria hospedeira foi projetada no ar, dentro de um lençol de cama, impulsionada por duas princesas, uma duquesa e três barões italianos.
O espetáculo de Carnegie Hall, o mais completo, em 10 de abril de 1927, não foi menos tumultuado, segundo o mesmo Roderich Fuhrman: "Provocou escândalo: o compositor parece ter passado da medida, recorrendo a 16 pianos, bigornas, serrotes, buzinas e automóvel e uma hélice de avião. Com base no depoimento de Joe Mullens, que criou os cenários e rememorou o evento em seu livro "The Mechanical Angel" (1948), Maurice Peress dá uma versão diferente, e mais confiável, do evento. O "Ballet" teve como pano de fundo o ciclorama de uma cidade futurista com arranha-céus. Na frente, uma série de máquinas de fazer ruído. No meio do palco, Antheil postou dez pianistas, entre os quais estava Aaron Copland e Colin McPhee, oito xilofones e quatro tambores-baixo; quatro pessoas, pelo menos, foram encarregadas dos "efeitos mecânicos: sinos elétricos, sirenes e hélices de avião; no centro, à frente de um piano mecânico especialmente construído para a ocasião, sentou-se Antheil; o regente, Eugen Goosens, dirigiu do alto de uma mesa num canto do palco. A hélice de avião (um ventilador elétrico maquiado) criou enorme confusão e o público reagiu atirando ao palco aviõezinhos de papel feitos com o programa. Uma sirene descontrolada continuou a tocar depois que a peça terminou. De algum ponto do auditório ergueu-se uma bandeira branca na ponta de uma bengala...
Rejeitado pelo público, odiado pela crítica, o concerto do Carnegie Hall encerrou a carreira "experimental do "bad boy da música. Segundo conta Virgil Thomson, em sua autobiografia (1966), o compositor, desacoroçoado, acabou contraindo uma doença pulmonar. Curou-se numa viagem à Tunísia. Depois de uma tentativa de retorno à cena européia com a ópera "Transatlantic" (1927-1928), estreada em Frankfurt, em 1930, com texto em alemão e passagens de jazz, retornou aos Estados Unidos, onde acabou compondo trilhas sonoras para filmes de Hollywood e escrevendo dois livros de conselhos amorosos, com

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