São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Armadilha da mídia

Redes difamatórias de comunicação existem há quatro séculos

ROBERT DARNTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A política parece ser uma sucessão de casos amorosos
Tudo começou com Aretino. Não que ele soubesse a que ponto a coisa chegaria: ele simplesmente desenvolveu uma nova arma, a difamação, para as batalhas políticas nas cortes italianas do século 16. Mas seu resultado atual é a forma de fazer política que vemos nos Estados Unidos de hoje: uma tendência a denegrir pessoas, a reduzir questões complexas às personalidades envolvidas. Se me permitem, gostaria de batizá-la "armadilha da mídia".
Tomemos o governo Clinton. Ele começou com uma tentativa de formar um gabinete que foi por água abaixo frente às acusações sobre como os nomeados tratavam suas babás e domésticas. Depois disso, o governo concentrou-se em desenvolver um programa de saúde pública, que por sua vez logo perdeu espaço para as críticas às especulações imobiliárias do casal Clinton.
A própria eleição parecia girar em torno à vida sexual de Clinton. E, antes disso, houve o caso Clarence Thomas (teria ele feito propostas indecorosas a Anita Hill?), o caso Gary Hart (ele tinha mesmo uma amante?) e o caso Oliver North (sua secretária foi de fato seduzida?), que logo se emaranhou com o caso Charles Robb (ele dormiu com uma modelo?) durante a campanha para o Senado na Virgínia.
A política parece não ser mais que uma sucessão de casos amorosos. Por que deveríamos nos interessar pela vida sexual de nossos líderes? Por que não debatemos questões relevantes? De que modo chegamos a tal situação?
Tudo começou em 1521, quando Pietro Aretino lançou a primeira "blitz" de mídia. Os cardeais estavam trancados na Capela Sistina havia semanas, engalfinhados na eleição do sucessor de Leão 10. Toda Roma mantinha a respiração suspensa e fazia apostas sobre o resultado. Conforme subiam os páreos e engrossavam-se as intrigas, certos poemas começaram a aparecer colados no lugar mais estratégico da cultura pública da cidade -uma estátua sem nariz nem membros na Piazza Navona, conhecida como "Il Pasquino".
Nunca se vira em público poesia assim. Desabusada, engraçada e terrivelmente bem-informada, ela devassava a vida de todos os candidatos -um cardeal afeito a garotos pequenos, outro que praticava usura, este que patrocinava batedores de carteira, aquele que morria de medo de sua "mamma".
As "pasquinadas" espalharam-se como fogo na pradaria. Copiadas, memorizadas, vendidas em tavernas e recitadas à mesa dos grandes senhores, elas firmaram um estilo de fazer política que persiste até hoje: o contraculto da personalidade.
O candidato de Aretino, Giulio de Medici, não venceu a eleição, mas Aretino ganhou tal reputação que acabou por se estabelecer como chantagista profissional. Ameaçando fazer de papas e príncipes motivo de riso por toda a Europa, viveu o resto de seus dias em opulência, temido e festejado em seu "palazzo" no Gran Canale de Veneza.
O sucesso de Aretino não se deveu simplesmente à difamação. Esta é uma velha arte, e os humanistas do Renascimento praticavam-na havia muito tempo, atirando infâmias a seus rivais e aos patronos de seus rivais. A essa tradição retórica Aretino adicionou a descoberta de um princípio que ainda hoje anima a mídia: o nome faz a notícia. Sua correspondência tornou-se uma espécie de serviço de notícias dedicado a denegrir os grandes nomes.
Ao mesmo tempo, uma figura bem mais nobre, Niccol• Maquiavel, desenvolvera um princípio complementar: o nome pode ser uma fonte de poder. Maquiavel explicava que um príncipe que cultivasse a reputação de ser impiedoso poderia conseguir com o simples medo o mesmo que conseguiria com uma batalha.
O cardeal Richelieu adotou a idéia e inscreveu-a no coração do absolutismo que erigiu na França durante a primeira metade do século 17: "O príncipe deve ser poderoso por meio de sua reputação (...). A reputação é tão necessária que um príncipe que goza de aprovação pode fazer mais com seu nome que aqueles que têm grandes exércitos mas pouca estima".
Mas nomes podem ser igualmente destruídos, e a monarquia quase desmoronou em 1649, quando o sucessor de Richelieu, cardeal Mazarino, foi expulso de Paris por uma rebelião e por uma torrente de poemas e panfletos. Essas "mazarinadas" levaram as "pasquinadas" a um nível inédito de insolência -e foram aproximadamente 5.000 entre 1648 e 1653.
Mesmo assim, parecem triviais se comparadas aos panfletos que esquadrinhavam a vida sexual dos reis durante o século e meio seguinte: "A França Galante", ou "Histórias Amorosas da Corte de Luís 14", uma epopéia político-sexual em cinco volumes, teve 48 edições durante o século 18; e cinco dentre os quinze maiores best sellers da literatura clandestina na França pré-revolucionária eram obras de difamação conhecidas como "libelos" ou "crônicas escandalosas". Juntas, formavam a principal versão da história contemporânea e das carreiras políticas que os leitores franceses tinham a sua disposição em 1789.
A literatura escandalosa seguiu trilhas paralelas na Inglaterra. Quando subiu ao trono em 1603, Jaime 1º desencadeou uma explosão de insolência que minou a legitimidade dos Stuarts muito antes da revolução de 1640-1660. A revolução de 1688 irrompeu no ápice de um novo ciclo de denúncias sobre a decadência e o despotismo da corte.
O mesmo gênero de difamação pode ser encontrado em quase qualquer época, nas folhas volantes da Reforma na Alemanha e na panfletagem da América jeffersoniana, para não falar da profusão de lama da Era Dourada (1). Surpreender-se com a imundície atirada ao presidente e à sra. Clinton significa esquecer que, na vida pública, poucas figuras foram imunes ao insulto e nenhuma esteve acima da suspeita -nem mesmo a mulher de César.
O que fazer? Poderíamos deixar de lado a história da difamação política com a observação de que lixo se acumula em qualquer época -por que levá-lo a sério? Mas talvez possamos aprender algo sobre as armadilhas da mídia se dermos uma olhada às pilhas de lixo do passado.
Uma vez que o mundo de hoje nos parece saturado de televisão, telefones, publicidade, e-mail e Internet, achamos que a mídia transformou a condição humana e levou-nos a um modo de vida substancialmente diferente do de nossos ancestrais. Não conseguimos imaginar a existência de redes de comunicação poderosas séculos atrás. Mas essas sociedades semiletradas tinham redes de mídia amplamente acessíveis e capazes de infligir sérios danos aos grandes e aos poderosos.
Um vocabulário específico desenvolveu-se durante o Antigo Regime francês para descrever modos de transmissão oral de notícias, frequentemente pouco lisonjeiras para o rei: da simples fofoca (o "on-dit") aos boatos ("nouvelles de bouche"), da difamação política ("mauvais propos") aos rumores potencialmente explosivos ("bruits publics", que por vezes inflamavam as "emoções populares" ou as revoltas).
Assim, a mídia popular transformava os monarcas e suas amantes em figuras de repertório num folclore político que se fazia passar por notícia. O modo de percepção dos acontecimentos tornou-se tão importante quanto os próprios acontecimentos. Mas o que são as notícias? Elas não são o que de fato aconteceu, mas um conjunto de histórias sobre o que aconteceu -e isso mesmo hoje em dia, quando os jornalistas ainda trabalham com o princípio -derivado de Aretino- de "o nome faz a notícia" e "nenhuma notícia é boa o bastante". Em consequência, as notícias tornaram-se um modo de dar má reputação a pessoas inocentes -especialmente se se trata do presidente.
Na mídia moderna, são os presidentes que se tornam caricaturas, exatamente como acontecia aos reis e rainhas nas redes de comunicação do passado. São figuras de repertório num novo folclore político: Richard Nixon, vilão maligno; Jimmie Carter, sulista ingênuo; George Bush, aristocrata empavonado; Bill Clinton, yuppie peso-pena. O único bom rapaz dessa galeria de personalidades é Ronald Reagan, ele mesmo um profissional da mídia que conquistou a Casa Branca a partir de Hollywood.
Seria errôneo igualar o jornalismo ao assassinato de personalidades, muito embora a contagem de corpos inclua quase todo ingressante na vida pública e a taxa de mortalidade seja alta o bastante para afastar muitos cidadãos competentes da carreira pública. Tampouco seria correto responsabilizar a imprensa pela personalização da política e pela caricaturização de personalidades. Não se trata sequer de uma tendência esquerdista ou direitista da imprensa -elas derivam simplesmente do modo de trabalho dos jornalistas profissionais, que cobrem "furos" e procuram histórias. Conseguir uma "boa" história muitas vezes significa pegar um político em falta -ter provas de sua culpa, desenterrar a sujeira de sua ficha policial, conta bancária ou agenda telefônica.
Onde teve início essa tendência? Na Roma renascentista, com Aretino. Aonde ela nos levará? Não sei, mas acho que bem precisamos de uma mudança de curso.

NOTA
1. "Gilded Age": período da história americana marcado por grande desenvolvimento econômico, materialismo crasso e corrupção, inaugurado com o mandato do presidente Ulysses S. Grant (1869-1877); o termo deriva do título de um romance escrito a quatro mãos por Mark Twain e Charles Dudley Warner, de 1873 (N. do T.)

Tradução de SAMUEL TITAN JR

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