São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Balé mecânico na era eletrônica

AUGUSTO DE CAMPOS

O 'concerto' chega via CD, sem cortes e censuras, atendidas as demandas técnicas 'impossíveis' de Antheil
Continuação da pág. 5-9
Com receio de desagradar a Gertrude, sempre terrivelmente ciumenta de suas amizades, chegou a renunciar ao convite de James Joyce para musicar um trecho do "Finnegans Wake"... Registre-se, ainda, que Thomson confessa não ter ido à apresentação parisiense do "Ballet" e não deixa claro se assistiu à do Carnegie Hall...
Outro compositor, Aaron Copland, que esteve no Théâtre des Champs Élysées e que, como se viu, atuou como pianista na performance de Nova York, fazia coro com Thomson numa carta da época ao compositor Israel Citkovitz: "Tenho que repetir minha inquebrantável convicção: este jovem é um gênio". Dez anos depois, já manifestava o seu desapontamento: "Em 1926, Antheil parecia ser 'o mais dotado de todos os jovens americanos'. Mas algo sempre parece impedir a sua completa realização. É difícil saber se isso é devido a uma falha de integridade artística ou a uma inusitada suscetibilidade a influências.
O próprio Cage foi severo com o compositor em artigo datado de 1946 -"The Dreams and Dedications of George Antheil". Começando por reconhecer que, em diversos dos seus aspectos importantes, a música moderna dos anos 20 só era conhecida por ouvir dizer (ele cita Russolo, Ives, Ruggles e Varèse), admite que, no caso de Antheil é impossível saber se a falta de sua música dos anos 20 nos anos 40 é de fato uma perda. Mas o artigo não contém nenhuma consideração propriamente técnica sobre essa música, e sim alusões à posterior má influência de Stravinski (especialmente do Stravinski neoclássico). Como seu próprio título sugere, o artigo se fulcra no questionamento ético da contradição entre os "sonhos" do jovem que abandonou uma exitosa carreira de concertista para se concentrar na composição inventiva e o compositor maduro que se entregou ao comercialismo de Hollywood, espelhado nas altissonantes dedicatórias da sua "Quarta" e "Quinta" sinfonias, respectivamente, "a Hedy Lamarr e todos os heróis vivos de todos os países" e "aos jovens mortos desta guerra, aos jovens mortos de todos os países". Cage termina se perguntando se as novas formas e os conceitos musicais admirados por Pound, Satie, Cocteau e outros não seriam "meras fachadas para um vazio nada". Uma dureza compreensível se se pensa na luta que Cage travava, à época, pela própria sobrevivência da música experimental, da qual Antheil, em pleno vigor físico e intelectual, se demitia inexplicavelmente.
Mas até que ponto se pode considerar mais do que conjectural e subjetivo o julgamento daqueles que pouco ouviram, ouviram mal ou literalmente não ouviram as mais importantes composições de Antheil -o "mau", não o "bom" menino?
Após a "recriação digital" de Maurice Peress, não tenho a menor dúvida, será difícil escamotear a presença do "Ballet Mécanique": ele me parece definitivamente incorporado ao elenco das obras relevantes da música em nossa época. Não soa como obra "datada", mas como uma realização de enorme impacto sonoro, com uma luz própria que a sombra do colosso stravinskiano não chega a esmaecer.
A concepção de espaço-tempo de Antheil, agora mais evidente e inteligível, com a reincorporação dos silêncios desmesurados e das repetições em "looping" do "Ballet" (expurgados das apresentações anteriores) reforça a convicção de ser Antheil um precursor das especulações sonoras de Cage e, como querem Maurice Peress e Charles Amirkhanian -este um dos principais responsáveis pela redescoberta e divulgação da obra de Conlon Nancarrow-, da estética minimalista, se não, ainda (acrescento eu) das alucinantes precipitações rítmicas das pianolas do próprio Nancarrow, uma das maiores revelações musicais dos últimos anos. Mas, acima de tudo, o "Ballet", a "Sinfonia de Jazz" -que na sua versão autêntica, se coloca, sem favor, no mesmo plano das composições metajazzísticas de Stravinski e Milhaud-; as aventuras percussivas, dissonantes e colagísticas dos anos 20, como a "Airplane Sonata" e a "Sonate Sauvage" (e mesmo "La Femme 100 Têtes After Max Ernst", já de 1933), todas para piano; as esplêndidas sonatas para violino e piano (6) e o primeiro quarteto de cordas (ao qual um resenhista da época qualificou significativamente de "festival gargantuesco de cacofonias") constituem obras que despertam renovado e irresistível prazer, um prazer que nem sempre encontramos em muitos que desdenharam o compositor (mais pelo que ele fez depois -é verdade- do que pelo que fez antes). Quando Antheil compôs o seu "Ballet", o disco engatinhava. Hoje o "concerto" nos chega via CD, sem cortes nem censuras, atendidas e respeitadas todas as demandas técnicas "impossíveis" que fazia. Livre dos excessos performáticos e do alarido dos parvos, do escândalo dos noticiários e da estultice dos críticos, a música, finalmente, se ouve. E merece ser ouvida.

NOTAS
1. Um registro do "Ballet" com o NY Percussion, sob a regência de Surinach, consta de um catálogo Schwann de 1978. Encontrei ainda menção a uma outra gravação, com o LA Contemporary Music Ensemble regido por Robert Craft num catálogo Schwann de 1968. Não há dúvida que se trata de versões reduzidas.
2. Uma excelente gravação dessa ópera, sob a direção de Lothar Zagrosek, foi editada em 1993 pelo selo London.
3. Todas as três "Sonatas para Violino e Piano" foram estreadas por Olga Rudge ao violino, as duas primeiras em Paris em 1923. Somente a 1ª e 2ª estão registradas em disco, conforme referido no início deste artigo. A gravação mais completa encontra-se num CD do selo Audivis Montaigne, de 1994, pela dupla Reinbert de Leeuw (piano) e Vera Beths (violino). Os dois apresentaram essas peças, em abril de 1989, num concerto em Düsseldorf em homenagem a Ezra Pound, com a presença da nonagenária Olga Rudge, que as interpretara 66 anos antes e que eu vim a encontrar, em 1991, ainda lúcida e cheia de vida, em Merano, no Castel Fontana, residência de Mary de Rachewiltz, filha dela e de Ezra Pound. As duas sonatas são obras poderosas, fulcradas sobre a percussão e o ostinatto, a segunda repleta de colagens musicais, justificando a alta apreciação de Charles Amirkhanian, que a relaciona ao mesmo tempo à música precedente de Charles Ives, então desconhecida, e ao minimalismo que eclodiu 40 anos depois.
4. Em 1913, Luigi Russolo (1885-1947) redigiu o seu manifesto conhecido como "A Arte dos Ruídos". Com Ugo Pratti criou os aparelhos de produção de sons e ruídos que chamou de "intonarumori". Suas composições (de que restaram alguns títulos e partituras não-convencionais) são uma incógnita. Os aparelhos originais foram destruídos. Dele, sim, se pode dizer, até prova contrário, que tem interesse apenas histórico. Além dos raros concertos futuristas na Itália, na década precedente, três apresentações de sua música foram realizadas, em junho de 1921, precisamente no... Théâtre des Champs Élysées. Pound estava na Itália, como se depreende de uma carta de 4 de maio, de Veneza, em que anuncia a William Carlos Williams que não voltará a Paris antes de 7 de julho. Antheil chegaria a Paris dois anos depois. Mais desencontros...
5. "Não era propriamente a música de um músico, mas talvez a mais bela música de um poeta desde Thomas Campion... e o seu som permaneceu na minha memória." ("Virgil Thomson", por Virgil Thomson, 1966).
6. Essas peças tiveram um registro pela pianista Marthanne Verbit no CD "Bad Boy of Music" (Albany Records). No mesmo disco, uma transcrição para piano do "Tango", leitmotiv da ópera "Transatlantic" e "Little Shimmy" (1923), e obras da última fase, "Sonata nº 4" (1948) e "Valentine Walzes" (1949), que nada acrescentam. É o que ocorre, também, com a "Sonata nº 4 para Violino e Piano" (1947-48), que Reinbert de Leeuw e Vera Beths interpretam no já mencionado CD da Audivis. Antheil bem comportado é uma lástima.

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