São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Saber xadrez não é preciso

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A paixão de Arrabal pelo xadrez -um jogo absolutamente lógico, em que os computadores nos massacram sem piedade- é mais um de seus paradoxos. Mas para ler o romance de Arrabal, não há nenhuma necessidade de o leitor conhecer o jogo, que tem uma função apenas de âncora na trama, fazendo contraponto à vida dos dois jogadores.
No entanto, se o leitor sabe pelo menos mover as peças, será uma curtição a mais acompanhar a partida pelas ilustrações reproduzidas no livro. A abertura é um "gambito da dama recusado", com troca dos peões centrais no oitavo lance, o que garante um jogo aberto e agressivo, com uma situação clássica: as branca abandonam os peões da ala da dama em troca de um ataque arriscadamente violento ao rei negro.
Arrabal criou uma sequência que, pela sua simplicidade luminosa, está sob medida para a alegria dos amadores: até mesmo eu, um péssimo enxadrista, vivi a ilusão de entender a combinação dos mestres e pude compartilhar a alegria do campeão ao sentir que a partida estava ganha...
Bem, um enxadrista um pouco mais chato (o que não é raro, pela natureza longa e silenciosa do esporte) criticará em Arrabal os dois ou três lances absurdamente fracos que levam um dos jogadores à derrota -mesmo considerando a tensão brutal que envolve a partida, submetida à trama rocambolesca da história, é pouco provável que um grande mestre, numa partida decisiva de um Mundial, cometesse tais erros, ainda que, por exemplo, alguém estivesse sendo enforcado na sua frente...
Se alguém duvida, deve ler "A Defesa", de Vladimir Nabokov, este sim um livro sobre a alma do xadrez -é um texto de uma perfeição e de uma crueldade irritantes. Nabokov, que amava o xadrez, mas separava as coisas, traça lance a lance um retrato esmagador da derrocada mental de um grande enxadrista. Nada que, de fato, interesse a Arrabal, que vive no mundo catártico e transformador dos conteúdos, da culpa e da remissão, do pecado e do milagre, da transgressão, do jogo, da brincadeira e da fusão libertadora de todas as coisas -por isso, mais do que apenas irônica, "A Torre Ferida por um Raio" é uma narrativa paradoxalmente alegre.

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