São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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As mutações artísticas da memória

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"O Peso do Morto", de Pedro Rodrigues Salgueiro, nascido no interior do Ceará em 1964, reúne doze pequenos contos do autor e -como uma espécie de suporte, pode-se dizer- 33 epígrafes (de duas a quatro por conto) de outros autores, os mais diversos em estilo, época, fama e nacionalidade.
Como o título indica, são narrativas que, em sua maioria, giram em torno da morte, senão da velhice e da memória, de saudades e cemitérios. Todas elas, bastante breves, envolvem pequenos núcleos de pessoas ou famílias e acontecem em vilarejos, sem indicação geográfica precisa.
Mas Salgueiro não reproduz apenas histórias ouvidas. Abertamente preocupado com a criação literária, o autor procura estabelecer um tratamento próprio da linguagem, sem cair no coloquialismo, mais fácil, de um simples compilador de casos. É esse esforço que torna o livro mais interessante.
Vale a pena insistir nisso: por mais pitoresco que seja, por mais que fale por si só, um "causo" só adquire grandeza literária por meio do trabalho autoral, que refaz o já contado, filtra e remoça o que uma memória coletiva possa ter erguido antes, para reproduzi-lo artisticamente.
Nesse aspecto, o melhor conto é justamente "O Peso do Morto". Com admirável poder de concisão, Salgueiro oferece construções como a seguinte: "O medo e o remorso não vinham em tempestades e trovoadas, mas em conta-gotas e reticências...". Ou como esta: "A noite parecia ter neblinado esperma de enforcado, tal era a quantidade das mandrágoras que cercavam e invadiam a casa pela manhã, quando teve que tocar trombeta para sua mulher arrancá-las sem ficar louca".
Alguns contos do livro, porém, provocam uma sensação de certa maneira híbrida no leitor: agradam, mas não empolgam. Assim ocorre com "O Desaparecido ou O Menino do Cabelo Azul", por exemplo, que oscila entre o fantástico e o infantil; ou com "Belisarina", cujo final já se adivinha logo de cara -e isso não é muito desejável num conto.
O momento mais curioso está em "Os Loucos de Papaconha", uma espécie de parábola dedicada pelo autor "aos velhos comunistas". O trecho seguinte dá bem uma idéia do que se trata: "O boato corrente na região dava conta da existência de um povo estranho, que pretendia invadir e saquear todos os lugarejos, escravizar seus homens, aproveitar-se de suas mulheres e comer suas criancinhas. Mas a distância que os separava era tanta que, se um bando deles se dispusesse a andar até os vilarejos, certamente envelheceria no caminho, e as poucas crianças que porventura os acompanhassem chegariam tão velhas que nem forças teriam para contar as histórias do percurso".
Com ilustrações que lembram trabalhos em xilogravura, o volume tem o esmero gráfico característico da pequena editora Giordano, em particular da sua coleção "Memória", que, com uma aguda sensibilidade histórica e literária, resgata, no agradável formato 12cm por 18cm, verdadeiras preciosidades.
Mas as epígrafes são irritantemente sobejas, refletindo mais uma talvez inconsciente insegurança do autor do que um complemento necessário à ficção retratada por ele. Salgueiro precisa saber que tem qualidades suficientes para dispensá-las.

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