São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Uma comemoração apressada

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Quis a divina providência que a psicanálise (a ciência do onírico) e o cinema (a mais poderosa máquina de sonhos) surgissem na mesma época, quase que ao mesmo tempo. Estariam ambos festejando este ano os seus respectivos centenários, arbitrariamente agendados a partir da publicação de um texto ("Estudos Sobre Histeria", de Freud com Josef Breuer) e da exibição pública das primeiras imagens em movimento colhidas pelos irmãos Lumière. Ao contrário de outros centenários ilustres (o raio X, o telégrafo sem fio, o pneu de carro, o cornflake), os cem anos da psicanálise e do cinema são efemérides sujeitas a polêmicas, bizantinas e irrelevantes para a maioria dos mortais, mas palpitantes e pertinentes para alguns iconoclastas de plantão.
O caso da psicanálise me parece ainda mais discutível. Por que teria ela nascido em 1895 e não em 1900, quando Freud publicou "A Interpretação dos Sonhos", por ele próprio considerado "a via régia de acesso ao conhecimento do inconsciente na vida mental"?
E por que não em 1896, quando Freud empregou pela primeira vez o termo psicanálise? Ou em 1897, quando Freud mergulhou em sua auto-análise, de fundamental importância para o desenvolvimento da técnica psicanalítica?
Convencionou-se que o capítulo sobre psicoterapia, nos "Estudos Sobre Histeria", aproximava-se suficientemente do processo da associação livre; daí sua escolha como o "início do método psicanalítico", para usar uma expressão de Ernest Jones, o primeiro grande biógrafo de Freud. Jones não contesta a escolha, mas ressalva que em 1895 Freud ainda se guiava, confessadamente, pelo "método catártico de Breuer". Como a primeira vez em que empregou tal método foi em 1889, com a srta. Emmy von N., já devíamos ter celebrado o centenário da psicanálise há seis anos.
Isso para não remontarmos a outro caso, o de Anna O., mais célebre ainda e paradoxalmente considerado o primeiro da história da psicanálise. Balizada por ele, a psicanálise estaria fazendo agora 115 anos.
Se não tanto, aos menos 103 anos, pois segundo o último biógrafo de Freud, Peter Gay, em 1892 ele já havia esboçado as linhas gerais da técnica psicanalítica: observação atenta, interpretação hábil, associação livre sem a sobrecarga da hipnose e a elaboração. Gay, diga-se, não força a barra nessa direção. Deduz-se que, também para ele, o marco menos discutível seja mesmo "A Interpretação dos Sonhos".
O próprio Freud foi mais crítico dos limites de suas pesquisas sobre histeria do que muitos dos seus seguidores e exegetas. Em carta a Wilhelm Fliess, datada de outubro de 1895, cinco meses após a publicação daqueles estudos, confessou: "Achava que já tinha o segredo, agora sei que ainda não tenho (...) Sinto-me como deve se sentir um explorador que apostou tudo o que tinha numa promissora trilha que, ao final, não leva a lugar algum".
Como pode algo que não leva a lugar algum tornar-se o ponto de partida de uma jornada que, apesar dos pesares, chegou um dia ao seu destino?
Em todo caso, está fazendo cem anos que Freud teve um sonho histórico, este sim de crucial importância para o desenvolvimento da psicanálise. Foi na noite de 23 para 24 de julho de 1895, passada na relaxante Bellevue, estação de veraneio próxima a Viena, onde a família Freud se recolhia todos os anos. Não vou resumi-lo aqui em respeito à sua complexa e nuançada tessitura. Tinha como pano de fundo uma grande festa e como protagonista uma jovem, chamada Irma, compósito de duas pacientes à beira de um ataque de nervos. Foi por meio dele que Freud desenvolveu a teoria de que nos sonhos realizamos nossos desejos. Embora tivesse encontrado Fliess em Berlim, em setembro de 1895, nada lhe falou a respeito do sonho e das interpretações que suscitara, só o fazendo em junho de 1900.
Àquela altura Freud já abandonara um de seus cavalos de batalha, a Teoria da Sedução, cujo descarte, por volta de 1897, talvez tenha alterado os rumos da psicanálise de forma mais decisiva do que os estudos sobre histeria. Até aqueles que lamentam a guinada de Freud, como, entre outros, Jeffrey Masson e Marianne Krull, concordam com isso.
Masson e Krull acusam Freud de haver substituído um trauma real (o abuso sexual do filho pelo pai) por uma fantasia (o filho de olho na mãe). Ora, a Teoria da Sedução original jamais proclamou que o trauma em si provoca sintomas histéricos. O que faz mal é reprimir a memória do trauma. A renúncia de Freud à Teoria, motivada pela convicção de que todos os seus pacientes haviam mentido (vale dizer fantasiado os abusos de que se diziam vítimas) e pela frustração de não haver curado nenhum dos 13 histéricos aos seus cuidados, não alterou a convicção de que as raízes da histeria tinham de ser rastreadas com a ajuda dos pacientes, devidamente dispostos e capazes de superar barreiras interiores.
Ao contrário do que pensam Masson e Krull, a psicanálise tornou-se bem mais audaciosa quando passou a investir na sexualidade infantil e nos desejos incestuosos, largando o pai e aproximando-se da figura materna. Razão bastante para que se protelem os festejos do seu centenário para daqui a dois anos.

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