São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Freud à brasileira

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como é possível que alguém, morando em Salvador, tenha feito uma biografia de Freud em três volumes, com mais de 1.000 páginas, a primeira escrita no Brasil? Quem é esse transgressor que começa espantando já pela própria proposta?
Emilio Rodrigué nasceu em Buenos Aires em 1923. Mora na Bahia desde 1974. Entre 1948-52 fez sua formação em Londres, tendo frequentado o grupo de Melanie Klein e feito análise com Paula Heimann. De volta a seu país, foi membro fundador da Asociación Psicoanalítica Argentina.
Como analista didata, iniciou a formação psicanalítica em Montevidéu, sendo membro fundador desta sociedade. Em 1968 foi nomeado presidente da Asociación Psicoanalítica Argentina e em 69 presidiu o Segundo Congresso Pan-Americano de Psicanálise.
Nesse mesmo ano, foi eleito vice-presidente da Associação Psicanalítica Internacional (1). Em 1972, por motivos ideológicos, saiu da IPA, junto com vários colegas, integrando o grupo Plataforma (2). Foi convidado para dirigir a formação psicanalítica de um grande grupo de profissionais em Salvador. Ao todo, tem 12 livros publicados, entre os quais há também aqueles que são de ficção, sendo alguns em parceria com seus companheiros de trabalho. Entre esses livros, chama a atenção o que foi escrito com Syra Tahin Lopes, no qual teve a coragem de escrever com sua ex-paciente o sonho que dá origem ao final de análise ("Sonho de Final de Análise", 1986).
Emilio Rodrigué está lançando agora, pela editora Escuta, uma biografia de Freud, em três volumes: "Sigmund Freud - O Século da Psicanálise 1895-1995", em que contesta as visões dos biógrafos Ernst Jones e Peter Gay. O lançamento será acompanhado de um evento (leia box nesta página), que terá a presença, entre outros, de Elisabeth Roudinesco, uma pesquisadora ímpar da história da psicanálise, e o diretor do Freud Museum of London, Michel Molnar. Leia a seguir a entrevista concedida por Rodrigué à Folha.

Folha - O sr. sempre escreveu sobre a sua própria vida. O sr. acha que a biografia de Freud condensa todos os seus livros anteriores?
Rodrigué - É o meu Freud...
Folha - Como é esse "seu" Freud, no que ele é diferente dos outros?
Rodrigué - O fato de ser latino-americano me fez falar de um Freud mais universal. Você sabe, as biografias são muito nacionalistas. Por exemplo, Peter Gay não menciona Lacan, e isso vale para o outro lado também... Meu lugar, aqui em Salvador, me permitiu ir articulando essas diferenças, sem ser tão tomado por esse sintoma...
Folha - É uma biografia crítica das outras biografias, mas me parece que também revela o que elas não puderam revelar.
Rodrigué - O que elas apagavam ou não podiam ver a partir da posição deles... Por exemplo, do lugar da ideologia da IPA...
Folha - O sr. fala da sexualidade do jovem Freud, por exemplo, e critica os biógrafos Peter Gay e Ernest Jones. O sr. parece mostrar que se pode ler de outra maneira o material existente e tomar outras pistas.
Rodrigué - Interessou-me especialmente o Freud adolescente, o jovem Freud, pois, duvido, como afirmam as biografias anteriores, que ele tenha chegado virgem aos 30 anos. Um jovem bonito, charmoso, enxuto, olhos pretos brilhantes, sem falar na cocaína e o seu interesse pelo sexual... Os biógrafos não falaram disso, não tocaram no jovem Freud...
Folha - E tocam de um modo envergonhado na questão da cocaína...
Rodrigué - É ambíguo, pois Jones faz um relato minucioso da relação de Freud com a cocaína. Muitos dados têm origem na biografia de Jones.
Folha - Que sempre frisava que a busca de Freud era a da pesquisa científica... Como foi feita a biografia, o sr. viajou atrás de dados?
Rodrigué - Durante cinco anos dediquei-me dia e noite, "full time". Sem o computador jamais teria conseguido fazê-la. Sempre quis viajar, era uma fantasia, mas quando chegava o momento não podia. Não fiz nenhuma pesquisa de arquivo. Esse pode ser visto como o ponto fraco do livro. Há uma idéia tradicional de que, para fazer um trabalho assim, eu teria que ter ido atrás de mais material de arquivo. Mas eu realmente achei que, interpretando o que já se sabe, e lendo algumas coisas de uma maneira diferente, surge um resultado que para mim é satisfatório. Eu estou muito identificado com o que escrevi.
Folha - No capítulo sobre Max Eitingon, no qual o sr. investiga as ligações de um dos primeiros discípulos de Freud com a espionagem da KGB, parece-me que há um lado até então não revelado da história da psicanálise.
Rodrigué - Foi alguém que estava trabalhando comigo que descobriu uma referência básica importante sobre Eitingon. E essa referência é conclusiva.
Folha - Que importância teve Eitingon?
Rodrigué - Trata-se da maior eminência parda na história da psicanálise...
Folha - Como Freud pensava a política? Como entender que ele só tenha saído de Viena em 1939, no último instante do avanço nazista, e o fato de que não tenha enxergado a ascensão de Hitler?
Rodrigué - Sobre isso haveria muitas questões para pensar... Freud não soube avaliar a Primeira Guerra Mundial, tinha mesmo dificuldade para avaliar a questão política.
Folha - O sr. concorda que Freud era autoritário?
Rodrigué - Eu acho que era um liberal conservador, com um toque autoritário...
Folha - E inventou a análise didática, criou a estrutura que os institutos da IPA têm até hoje... Freud procurou ter o controle sobre o que ele tinha criado.
Rodrigué - Sim, a mesma estrutura de 1918...
Folha - E a sua identificação com Freud? O que dele "encarna" no sr., nesse seu trabalho?
Rodrigué - Houve um fenômeno como que de fascinação. A experiência de ver o livro mudou muitas coisas em mim, foi variando minha relação com Freud. Como se alguns pontos ganhassem uma distância diferente, uma coisa mais ótica. Mas o processo de escrevê-lo foi uma experiência transformadora. As pessoas se surpreendiam quando eu falava que ia fazer um novo Freud. O livro foi uma espécie de passe que me tirou para fora da transferência com ele.
Folha - Em vários momentos da biografia, o sr. usa a noção junguiana de sincronicidade. Qual é a sua posição em relação a Jung?
Rodrigué - Depois que eu o li, eu gosto. O que melhor conheci de Jung foi a sua correspondência com Freud. E nessa correspondência ele se mostra um discípulo independente. Foi graças a ele que Freud desenvolveu a noção de narcismo.
Folha - Por que o sr. se desligou da IPA?
Rodrigué - Éramos 40 membros da Plataforma que explicitavam uma denúncia. Queríamos modificar as estruturas da IPA e, em particular, as que tinham a ver com a formação, com o ensino. Eu era analista didata. Foi um momento muito criativo. Se a Plataforma não tivesse acontecido, minha biografia de Freud não poderia ter sido concebida. O movimento Plataforma furou o globo da IPA, que deixou de ser esse lugar mágico. Uma magia burocrática... Tinha-se uma sensação muito forte de pertinência grupal, uma coisa de horda.
Folha - O sr. teve um encontro rico com o pensamento lacaniano...
Rodrigué - Eu não conheço bem Lacan. Foi muito difícil para mim chegar perto, devido à minha formação, à minha idade etc. Custou, mas foi muito importante todo o processo. Tive que revisar muita coisa. Em um certo sentido, foi um trabalho de luto.
Folha - O sr. se tornou, em certo momento, um reichiano?
Rodrigué - Não exatamente... Mas eu fiz, durante um tempo, bastante tempo, um trabalho em que entrava o corpo. Os laboratórios começavam a aparecer, era 1969, 1970. Durante um tempo, usei técnicas reichianas, o psicodrama, vários recursos. Usei essas práticas muito mais em grupos do que individualmente. Acho mesmo que, no fundo, ainda hoje aparecem esses recursos em meu trabalho. Eu os uso sem usá-los, como se fosse uma coisa invisível. Porque eu, em minha prática, sou bastante ortodoxo.
Folha - Corre por aí que o sr. faz análise na praia...
Rodrigué - Não é a primeira vez que me falam isso... Não, não faço análise na praia. Acontece que o local no qual atendo fica muito perto do mar e no verão trabalho com bermudas. É engraçado ver as fantasias que as pessoas têm de um analista baiano...
Folha - Talvez haja uma certa maldade preconceituosa na construção da imagem do que é um psicanalista, como se ele não pudesse ir à praia. O fato é que não é qualquer coisa que se torna análise.
Rodrigué - Não, de jeito nenhum... Mas pode-se analisar de mil maneiras. E isso é o lindo da nossa prática...
Folha - Tudo isso remete ao contato que o sr. teve com Susan Langer (3), a concepção que ela tem de formas expressivas, de formas de consciência pré-reflexivas. De que maneira as noções de Susan Langer têm a ver com toda a sua experiência atual?
Rodrigué - Eu me lembro de uma frase que me causou grande impacto, quando Susan Langer afirmou que todo movimento é um gesto. Isso estendia a questão do simbólico para além do discursivo.
Folha - Mas sempre dentro de uma racionalidade...
Rodrigué - Agora, em relação à experiência pessoal que tive com ela, havia muito rigor, não se podia colocar mais ou menos, tinha que se precisar as coisas. Acho que adquiri aí uma parte desse rigor, que me norteou na feitura dessa biografia de Freud. Ela me convidou para ir até onde morava, nos Estados Unidos. Propôs que eu ficasse trabalhando na clínica de Erikson, entre outros. Fui seu único discípulo, pois ela foi uma pessoa inteiramente desinteressada da docência, morava em uma cabana no meio de uma floresta, acho que não tinha nem telefone, não tinha rádio nem televisão, tocava um violoncelo. Ela me ensinou muitas coisas, me ensinou lógica, me fez ler Hegel naquele momento. Questionava tudo em relação à psicanálise. Foi uma experiência muito válida. Durou três anos.
Folha - Até então o sr. era membro da IPA...
Rodrigué - Falamos de um antes e de um depois de Susan Langer. Acho que antes eu era um analista jovem, provavelmente com boas idéias, que estava procurando o meu caminho e que estava dentro da ortodoxia, da ortodoxia freudiana, mas, acima de tudo, da ortodoxia kleiniana. Depois de Susan Langer, começa em mim uma diferenciação, um devir mais o que eu sou hoje em dia, mais transgressivo em certo sentido... Talvez porque ela fosse uma pessoa muito sólida intelectualmente e que começou a me colocar questões que em geral um analista não se faz. Por exemplo, me perguntava o que é que eu entendia por "ego. Foi uma grande experiência.
Folha - Em que ano era isso?
Rodrigué - 1960. Tenho duas Langer na minha vida: Susan Langer, responsável pela virada teórica, e Marie Langer (4), quando se dá a virada política. A Marie Langer deu solidez ao meu interesse pelo trabalho com grupos, que já se iniciara em Londres, quando fui observador de um grupo de Bion. Já nos Estados Unidos interessei-me pelas questões de trabalho comunitário, e, com a maior participação política, os grupos foram ganhando cada vez mais importância em meu trabalho. Só voltei a trabalhar individualmente quando deixei de ser um "psicoargonauta", sempre viajando entre Madri, Salvador, Caracas, Medelin...
Folha - Por que o sr. escolheu Salvador para viver?
Rodrigué - Havia, antes de mais, nada um dever desejante. Para chegar a fazer essa biografia, Salvador foi fundamental. Dentro de mim faz um grande sentido. Salvador é uma história de amor. É o lugar do mundo onde hoje eu me sinto melhor. Melhor mesmo que na Patagônia. Vim para cá em 1974, depois que me exilei, devido a um acontecimento específico: fui convidado para participar de um evento sobre candomblé. Era um encontro de antropólogos. Gostei muito desse lugar e decidi ficar. Ficava então seis meses em Salvador e seis meses em Madri. Aos poucos, Salvador foi devorando Madri.
Folha - Como o sr., um psicanalista, vê a religiosidade baiana?
Rodrigué - São trilhas que caminham mais ou menos perto, mas cada uma tem o seu próprio curso. Há uma poesia que diz: "Não insulteis a fé com a esperança. Como se a esperança fosse um insulto à fé! Eu tenho fé, mas não tenho esperança... Não estou esperando nada da religião.
Folha - E o que é a fé para o sr.?
Rodrigué - É o que eu chamo de dever desejante.
Folha - Dever ou devir?
Rodrigué - Dever mesmo.
Folha - O dever no sentido kantiano...
Rodrigué - Que é o que dá o sentido de viver.

NOTAS
1. IPA (International Psychoanalytical Association) é a instituição oficial de transmissão da psicanálise. Considera-se a única herdeira do ensinamento freudiano, mantendo até hoje a hierarquia proposta por Freud, na qual cabe ao analista didata a responsabilidade de formação dos candidatos a analistas.
2. A partir de questões políticas formou-se o grupo Plataforma, que questionava a estrutura vertical das instituições psicanalíticas oficiais e o monopólio dos analistas didatas. Tais posições acabaram levando a uma cisão com o IPA, em 1972.
3. Susan Langer foi discípula de Ernest Cassirer, filósofo neo-kantiano que trabalhou profundamente a questão do mito. Em português, há tradução de duas de suas obras principais, "Filosofia em Nova Chave" e "Forma e Sentimento", ambas publicadas pela Perspectiva.
4. Marie Lancher nasceu na Áustria e morou na Argentina até ser obrigada novamente se exilar por razões políticas. Da Áustria, onde já fazia sua formação analítica, teve que partir durante a ascensão do nazismo, tendo lutado na Guerra Civil Espanhola. Foi homenageada pela Passionária. Depois de sair da Argentina, trabalhou na Nicarágua. Foi idealizadora do movimento Plataforma.

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