São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Retrocesso ameaça pesquisa

REINALDO GUIMARÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil precisa de uma política de Ciência e Tecnologia (C&T)?
Sim, porque não haverá "mercado capaz de regular, em benefício do país, as relações entre as instituições que fazem pesquisa, nem as relações entre elas e indústria, educação, agricultura, saúde, cultura etc. Ademais, porque a maioria dos componentes do setor de C&T no Brasil desenvolve atividades pré-competitivas, para cujo fomento é indispensável uma forte, direta e insubstituível presença do Estado.
O Brasil possui uma política de C&T para médio e longo prazos?
Sim, e ela está exposta nos Planos Plurianuais do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), cujo texto em vigor caduca este ano. Um novo texto está sendo preparado para entrar em vigor de 1996 até o ano 2000, após ser aprovado pelo Congresso.
Esse plano vem orientando as ações do governo federal no campo da C&T? Parece que não, pois a comparação entre o discurso do ministério, expresso no plano, e o exercício da política de C&T revela divergências que chegam à franca oposição entre o que está dito e o que termina por ser feito.
Vejamos a política de fomento direto às atividades de pesquisa. Nesse particular, não estaria muito longe da verdade se condensasse o discurso governamental dos últimos anos nos seguintes objetivos:
1) avaliar a pesquisa para melhorar-lhe a qualidade;
2) instituir ações capazes de aumentar-lhe a competitividade, nacional e internacionalmente;
3) diminuir o desequilíbrio entre suas vertentes científica e tecnológica, aumentando a presença da segunda;
4) finalmente, obter mais recursos e recursos mais regulares.
Esses quatro pontos estão longe de ser toda a política para o segmento, mas são a parte mais importante e visível.
Tomemos a evolução dos desembolsos destinados ao fomento em anos recentes. A quantidade de recursos é sempre muito pequena em relação ao total de desembolsos realizados pelo MCT, que esteve entre US$ 400 milhões (92) e US$ 1 bilhão (94) por ano.
Além disso, observa-se que o total desembolsado para o financiamento à pesquisa decresceu no governo Collor e aumentou cerca de 150% durante o governo Itamar, fazendo-os retornar aos níveis do final do governo Sarney.
Mas, se perguntarmos a qualquer pesquisador brasileiro, mesmo os do primeiro time, digamos, um dos 170 presentes na lista da Folha, se esse aumento é perceptível no plano da atividade de pesquisa, provavelmente a resposta será negativa. Inclusive arrisco dizer, em particular se ele não trabalhar em São Paulo -pela existência da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)-, que a sensação do pesquisador pode ser a oposta.
Em primeiro lugar, porque a recuperação financeira partiu de patamares muito baixos. Mas também suspeito que haja dificuldades para implementar os primeiros três pontos expostos na súmula. A tabela as expressa com clareza.
Paralelamente ao aumento global houve mudança importante nos volumes relativos a cada um dos programas mencionados.
O FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) manteve-se oscilante, sempre em um patamar insuficiente para cumprir sua missão.
O PADCT (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a carteira de auxílios do CNPq apresentam um desembolso francamente cadente.
Em contraste, os programas de taxas acadêmicas -gerido pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) desde 91- e de bancada -gerido pelo CNPq desde 93-, apresentam um vigoroso crescimento, devendo chegar, ao final de 95, a um desembolso de cerca de US$ 112 milhões.
São elas, pois, o principal instrumento federal de fomento à pesquisa no país, hoje. Se essa tendência for mantida, em 95 elas terão desembolsado mais que a soma dos outros três programas.
As taxas são parte dos programas de bolsas de estudo do CNPq e da Capes e consistem num montante concedido aos melhores cursos de pós-graduação, cujo valor é proporcional ao número de bolsas que cada curso recebe.
Foram concebidas no governo Collor, quando o corte de gastos foi levado ao paroxismo, e a alta burocracia fazendária levou ao paroxismo sua histórica inclinação para privilegiar a liberação de recursos ao programa de bolsas.
O governo Itamar teve, por certo, o setor de C&T em melhor conta que o anterior. Lamentavelmente, no entanto, o maior volume de recursos para o setor continuou a privilegiar programas de bolsas das duas agências. Daí a transformação das taxas em tábua de salvação financeira de boa parte da pesquisa no país.
Mas a pergunta é: que mecanismo faz com que um maior aporte de recursos ao financiamento direto à pesquisa termine dificultando a implementação de uma política que, no plano do discurso, parece racional e adequada? Para respondê-la, é preciso dizer duas palavras sobre os padrões históricos de financiamento à pesquisa no país.
Encerrados os tempos da filantropia, a partir de 51 e por duas décadas, a pesquisa no Brasil foi apoiada exclusivamente por pequenos "grants (doações) conferidos diretamente a pesquisadores que tinham o mérito de seus projetos analisados por pares.
Isso ocorreu a partir daquele ano no CNPq e, a partir de 62, na Fapesp. Apesar de eventuais problemas, foi sempre muito alta a probabilidade de esses dispêndios serem realizados com itens relacionados à pesquisa. Se essa era a grande virtude dos "auxílios individuais, como passaram a ser conhecidos, sua principal limitação era a pulverização dos recursos.
Foi para tentar superar essa dificuldade que, a partir de 71, entrou efetivamente em cena o FNDCT, pelo qual massas de recursos eram alocadas a projetos de muito maior envergadura. Sua grande virtude era a capacidade de concentrar recursos, aumentando a escala do apoio. Sua maior debilidade foi o pequeno controle sobre contratos e desembolsos.
Mas voltemos ao presente. Por que os recursos aumentam a partir de 92 e esse aumento provoca um maior distanciamento em relação ao discurso de aumentar a qualidade e a competitividade da pesquisa, bem como de enfatizar seu diálogo com o mundo da produção?
Pois basta refletir sobre o modo como operam as taxas para ter, senão toda, pelo menos boa parte da resposta. Para estimular a competitividade e propiciar o aumento da qualidade, o modo de fomentar deve ter, entre outras, duas características: por um lado, concentrar recursos em projetos de qualidade; por outro, acompanhar e avaliar a performance deles. Ora, o padrão de financiamento instituído pelas taxas faz exatamente o oposto.
Por um lado, dispersa recursos como fazem os auxílios individuais. A dotação média por curso em 94 foi de cerca de US$ 56 mil. Para efeito de comparação, em 79, ano em que atuou de modo mais disperso durante a década de 70, o FNDCT realizou 207 operações de financiamento, com um valor médio de US$ 740 mil por operação.
Por outro, as taxas operam com baixíssima capacidade de acompanhamento do destino real dos dispêndios. Os recursos são repassados às pró-reitorias de pesquisa (Capes) ou aos coordenadores dos cursos (CNPq), e os itens em que as despesas são realizadas variam.
Podem ser despesas diretamente vinculadas às atividades de pesquisa nos cursos, mas podem não ser e, neste momento, nem o CNPq nem a Capes têm diagnóstico seguro a respeito do destino efetivo dos recursos.
É conhecida a inclinação da pesquisa brasileira pela ciência básica, bem como sua vocação acadêmica. Grande parte dos grupos de pesquisa mais produtivos está localizada em universidades e esse resultado se seguiu à implementação de diversas políticas ao longo das últimas décadas.
Uma delas foi o modelo do financiamento, realizado de modo passivo, dedicado ao atendimento de uma demanda exclusivamente construída no ambiente dos laboratórios, sem muitos vínculos com prioridades governamentais. Outra, a implantação de uma pós-graduação centrada nas universidades, em paralelo a um consentido, embora não explícito, abandono dos institutos de pesquisa.
Por fim, o processo de industrialização, com o predomínio de um padrão associado-subordinado, desestimulador da capacitação tecnológica nacional. Em face disso, nada mais correto que procurar aumentar os laços da pesquisa com o setor produtivo.
No entanto, o padrão de financiamento das taxas opera rigorosamente no sentido oposto. Simplesmente porque o perfil do parque de pós-graduação, em particular o da melhor pós-graduação, que acaba por definir o perfil de distribuição dos recursos, é ainda mais básico e acadêmico que o perfil geral do parque de pesquisa.
Em resumo, portanto, essa é a situação do financiamento federal à pesquisa no Brasil. Discurso apontando para uma coisa, e prática apontando para outra. Governo aumentando o aporte de recursos, e pesquisadores infelizes, sem perceber com nitidez o que está acontecendo. Plano Plurianual numa direção, vida real noutra. Numa palavra, retrocesso anunciado nas ações de fomento à pesquisa.
Para finalizar, duas advertências importantes.
Embora já mencionado, não custa reafirmar: as taxas de bancada e acadêmica se tornaram tábua de salvação para milhares de pesquisadores, em particular cientistas acadêmicos. Portanto, não se deve cogitar de extingui-las de uma hora para outra.
Trata-se de iniciar um processo de modificação do perfil na dotação aos programas de fomento federais, no sentido de reequilibrá-los e reorientá-los de acordo com requerimentos já presentes no discurso oficial. Mais ainda, sem esquecer que os recursos desembolsados em 94 apenas recuperaram os valores de 90, de lutar pelo aumento do montante global.
Fica claro que a "responsabilidade dos titulares da C&T e da Educação é limitada. O desenvolvimento das políticas setoriais pelas quais são responsáveis é, em boa parte, determinado na Fazenda ou no Planejamento.
Essa circunstância, no entanto, longe de propiciar sentimentos conformistas, deveria orientar David na formulação de uma estratégia capaz de otimizar os embates com os Golias governamentais. Na ausência da funda bíblica, o desenvolvimento de alianças mais sólida com a comunidade científica, empresários, parlamentares poderia ser de muita valia.
Por um lado, aumentando a visibilidade do setor no panorama político. Por outro, propiciando respaldo numa eventual polêmica pública que não deveria ser descartada por prejudicial ao governo e, muito menos, por ofensiva à unidade da equipe governamental.
O presidente já declarou inúmeras vezes que se trata de um setor prioritário. Cabe apenas, sempre que necessário, ajudá-lo a arbitrar em favor do setor ao qual pertenceu, em que militou e fez sucesso durante a maior parte de sua vida.

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