São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Igreja Católica precisa de 'diretas-já!'

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não há como não se admirar diante da ingenuidade de um setor da Igreja que pretende instituir ou reinstituir o ensino religioso nas escolas públicas paulistas. Diante de seus conhecidos e contraproducentes resultados, a atitude dos prelados se mostra enigmática. E antidemocrática.
As escolas públicas não são capazes de ensinar nem aritmética nem português. E, portanto, as chances de formarem bons católicos -ou protestantes, muçulmanos etc- não são sequer mínimas. Não se trata, assim, de uma discussão pragmática, mas de uma questão de princípios. Isto é: as escolas são públicas, mas numa república, numa democracia, a fé pertence à esfera privada.
Além disso, aulas de religião na rede pública envolveriam problemas insuperáveis, pois, para que todas as confissões recebessem tratamento equitativo, haveria apenas duas opções possíveis: (1) conseguir indivíduos versados ao mesmo tempo em dezenas ou centenas de religiões diferentes (incluindo ritos xamanísticos, cultos da fertilidade, politeísmos variados, sacrifício humano, cerimônias orgiásticas -pois religião é tudo isso); ou (2) contratar professores individuais para as dúzias, pelo menos, de religiões praticadas no país (incluindo as dos indígenas, as afro-brasileiras, a do reverendo Moon etc.), sem falar de professores agnósticos e ateus para os filhos de famílias idem.
No primeiro caso, não haveria garantia de que esses professores tratariam seu tema com neutralidade, deixando favorecer uma ou outra confissão. No segundo -e isso vale mesmo para aulas não obrigatórias-, o resultado seria a criação de uma clivagem preocupante no corpo discente. Fala-se muito em moralidade pública nas atuais discussões, mas, se há de fato alguém interessado nela, que promova então o ensino da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que é consensual, ou da Constituição, que é a lei do país.
Será que os defensores do ensino religioso se esqueceram de que a separação entre a Igreja e o Estado não existe só para proteger este último de alguma fé que ambicione uma situação de monopólio? Ela existe também para proteger cada fé de suas rivais e para evitar que o Estado e a sociedade civil interfiram nos assuntos internos de qualquer uma delas. Agora, se um determinado grupo religioso quer se valer das verbas públicas para promover -mesmo que seja sob o manto conveniente do "ecumenismo- determinadas idéias privadas, a sociedade civil tem então todo o direito de intervir igualmente na sua esfera particular. Se a religião se torna algo público, ela deve se submeter às regras, estas sim sagradas, da democracia.
Em outras palavras, a Igreja Católica deveria, nesta hipótese, ser tratada como qualquer instância pública, publicando, por exemplo, seus balanços ou submetendo suas decisões contestadas às cortes de justiça. Seus cargos seriam eletivos. Numa democracia moderna, direitos e obrigações são, em princípio, simétricos. Assim, se os cidadãos forem obrigados, por meio dos impostos, a pagar para que a Igreja doutrine -ou, pelo menos, tente doutrinar a garotada, cabe-lhes reivindicar também os seus direitos correspondentes. E, entre estes, está o de votar diretamente, não só para bispo, arcebispo e cardeal -discutindo publicamente seus respectivos programas-, mas sobretudo para papa, que, aliás, teria um mandato de quatro ou cinco anos no máximo. A contrapartida democrática do ensino religioso na rede pública é simplesmente: "diretas-já! na igreja.

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