São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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TWAIN SEM CENSURA

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Segundo Ernest Hemingway, "toda a literatura moderna americana vem de um livro de Mark Twain chamado 'Huckleberry Finn' ". William Faulkner chamava Twain de "o pai do romance nos EUA" por causa de "Huckleberry Finn".
Apesar de muitos elogios enobrecedores como esses, o livro "As Aventuras de Huckleberry Finn" tem sido o objeto do ódio de muitos norte-americanos desde sua publicação há exatos cem anos. Louisa M. Alcott, autora de "Pequenas Mulheres" (Little Women), assim reagiu na época ao romance: "Se o sr. Samuel Clemens (nome verdadeiro de Twain) não pode pensar em coisa melhor para contar aos nossos rapazes e moças de mente pura, é melhor que pare de escrever para eles".
Nas duas primeiras décadas do século 20, centenas de cidades dos EUA proibiram que "Huckleberry Finn" fosse lido por seus estudantes de segundo grau, porque o consideravam imoral e antireligioso.
Nas duas últimas décadas do século 20, de novo "Huck" é censurado pelos EUA afora por acharem que ele degrada e destrói a humanidade dos negros. Do caro e sofisticado colégio St. Alban em Washington, onde estudam os filhos do vice-presidente Al Gore e do pastor negro Jesse Jackson, às escolas públicas de Winnetka, Illinois, Twain se encontra sob censura.
A Folha publica hoje, pela primeira vez no Brasil, trecho inédito de "Huckleberry Finn" que estava entre manuscritos de Mark Twain descobertos em 1990, no sótão de uma casa em Hollywood, Califórnia. Os papéis eram os originais da primeira parte da novela, que se julgava perdidos. Eles foram reunidos à segunda parte e agora tudo está exposto no biblioteca pública de Buffalo, em Nova York.
Pesquisadores descobriram muitas diferenças entre os manuscritos de Twain e a primeira edição do livro, de 1885. Entre elas, no capítulo 9, esse episódio até agora desconhecido (e que só neste ano foi publicado nos EUA, pela revista "The New Yorker").
Não se sabe porque Twain decidiu não incluir esse pedaço da história na edição publicada. Ele descreve uma conversa entre Huck -que fugia de seu pai bêbado e cruel- e Jim -o escravo que escapara de sua dona-, numa caverna da ilha de Jackson, no rio Mississippi, durante uma tempestade.
A amizade entre Huck, branco, e Jim, negro, é o principal motivo das polêmicas recentes sobre o livro de Twain. Huck havia aprendido na sociedade do Sul dos EUA, na primeira metade do século 19, que ajudar um escravo a fugir era pecado mortal, que custaria ao autor da "traição" a eternidade no inferno.
Quando conhece Jim, Huck se afeiçoa por ele e sofre grave drama de consciência entre a obrigação social e religiosa de entregá-lo e o dever humano de ajudá-lo a ser livre.
Afinal, Huck resolve prefere correr o risco da eterna danação.
Apesar da clara opção pela fraternidade entre brancos e negros, muitos líderes da comunidade negra norte-americana se sentem ofendidos pelo livro. Primeiro, porque o termo "nigger" (crioulo), considerado hoje em dia muito insultuoso, é usado 160 vezes no texto de Twain. Na época em que o enredo de "Huckleberry Finn" se passa, todos os brancos se referiam a negros como "niggers" e a expressão nem era tão ofensiva. Mas isso não é levado em consideração pelos que se acham insultados pela "palavra N", eufemismo politicamente correto para substituir "nigger".
Outro motivo para a condenação de Huck entre alguns negros atuais é que, para eles, Huck escolhe não denunciar Jim apenas porque o ama, não por achar aquele o comportamento correto. A prova disso, para eles, é que Huck, mais ao final do livro, diz se decepcionar com o seu ídolo Tom Sawyer, quando descobre que Sawyer protegia escravos fujões por uma questão de princípios.
O debate sobre o suposto racismo de Twain parece não ter fim. Há pouco tempo, foi descoberta uma carta dele que, na opinião de seus defensores, comprova que Twain se opunha à segregação racial. Na carta, de 24 de dezembro de 1885, Twain diz ao reitor da Universidade de Yale que gostaria de financiar os estudos de Warner McGuinn, o primeiro estudante negro a cursar aquela instituição. "Nós (os brancos) arrancamos deles (os negros) a sua humanidade e nós é que temos que nos envergonhar disso, não eles -e nós devemos pagar por isso", escreveu Twain ao reitor Francis Wayland.
Os acusadores do romancista lembram que em 1861, aos 26 anos, ele se alistou como voluntário no exército confederado, do Sul do país, que lutava pela separação dos EUA para manter a escravidão em sua região. Mas, três semanas depois de ter-se alistado, Twain desertou e fugiu para o Oeste do país, onde trabalhou como jornalista.
Ralph Ellison, o maior romancista negro da história dos EUA, autor do monumental romance "O Homem Invisível", dizia que ele próprio, enquanto crescia no ambiente racista do Sul do país no começo do século 20, podia se imaginar como Huck Finn, entender o drama de consciência que ele viveu.
Reduzir "As Aventuras de Huckleberry Finn" à questão racial, no entanto, é um erro grave, porque o valor maior do livro não é filosófico, sociológico ou moral, mas literário. Negar aos estudantes o privilégio do prazer de ler "Huck Finn" é um crime contra a formação estética e emocional de uma geração.
"Huckleberry Finn" é o primeiro livro no vernáculo norte-americano. Ou seja: Twain usou de ponta a ponta a linguagem que as pessoas comuns falavam no Sul dos EUA no início do século 19, um verdadeiro dialeto.
Por isso, traduzir "Huck Finn" é tão difícil. A tradução que a Folha publica (leia na página ao lado) é menos vernacular do que o original. Mas o leitor tem a chance de ler o trecho inédito em inglês (à pág. 5-6) e verificar a riqueza da linguagem.

"As Aventuras de Huckleberry Finn", em tradução de Sergio Flaksman, será lançado em outubro pela editora Ática, com o trecho recém-descoberto, dentro da coleção "Eu Leio", na qual já foi publicado "As Aventuras de Tom Sawyer", também de Mark Twain, dentre outros clássicos da literatura

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