São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

STYRON VÊ A INTOLERÂNCIA

WILLIAM STYRON
ESPECIAL PARA "THE NEW YORKER"

Se Mark Twain tivesse usado a palavra "escravo" em vez de "negro" (a qual aparece mais de 200 vezes ao longo de "Huckleberry Finn"), é bem possível que muitas das pessoas que recentemente lançaram ao livro a acusação de racismo teriam se acalmado um pouco. Mas "negro" permanece ainda nossa blasfêmia secular mais forte. Muito embora, no Missouri de 1840, um garoto de 12 anos dificilmente tivesse contato com o termo "escravo" (termo em larga medida confinado às proclamações governamentais, discussões religiosas e documentos jurídicos), o inocente hábito vernacular de Huck parece ter sido um dos motivos do pânico que recentemente levou a National Cathedral School (Washington) a retirar Huckleberry Finn do currículo do 10º ano, tornando-o leitura optativa (de obrigatória que era) para os dois anos seguintes.
A única surpresa está na natureza da escola: ao longo das últimas décadas, o livro foi proibido e banido inúmeras vezes das estantes das bibliotecas.
Há alguns anos, John H. Wallace, pedagogo negro em Fairfax (Virginia), vem promovendo campanhas de proteção à juventude, insistindo que Huckleberry Finn seja retirado das bibliotecas escolares; também publicou uma obra que deve certamente entrar para os anais da censura: uma versão do livro em que a palavra "negro" é expurgada. A cruzada de Wallace -que descreveu o objeto de seu ódio como "o exemplo mais grotesco de lixo racista que já se escreveu"- é um exemplo extremo da animosidade que se aglutinou ao redor do romance.
"Huckleberry Finn" revela o espírito de um autor cheio de idéias ambíguas sobre a diferença de raças. O que admira é que a educação e a experiência adulta de Twain (incluindo uma rápida passagem pelo exército confederado) tenham-no deixado com tão poucas marcas de fanatismo.
Muito embora a maioria dos seus milhões de leitores (muitos deles de raça negra: Ralph Ellison, que escreveu com admiração sobre como Twain, compreende a complexidade da escravidão e percebe a humanidade essencial de Jim) não tenha encontrado racismo algum no livro, "Huck Finn" jamais conseguiu escapar ao turbilhão de discórdia -e provavelmente jamais conseguirá, pelo menos enquanto seus encantadores protagonistas, com seus sentimentos ambíguos e imprevisíveis, persistirem como símbolos de nossa confusão racial.

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

Texto Anterior: JIM E O MORTO
Próximo Texto: JIM AND THE DEAD MAN
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.