São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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JIM E O MORTO

Leia o episódio inédito de "Aventuras de Huckleberry Finn"

MARK TWAIN

"Uma vez eu enfrentei uma tempestade aqui, com Tom Sawyer e Jo Harper, Jim. E era uma tempestade bem feito essa -no verão passado. A gente não sabia que esse lugar ficava aqui, e aí ficou ensopado. Caiu um raio numa árvore grande, e ela virou um monte de lascas de madeira. Por que é que raio não deixa sombra, Jim?
"Ora, eu sempre achei que deixava, mas não sei.
"Não deixa não. Eu sei. O sol deixa sombra, vela acesa também, mas raio não. Tom Sawyer disse que não deixa, e é assim que é.
"Olha, menino, acho que não é feito você está dizendo. Me dá a espingarda -eu vou ver.
Ele botou a espingarda de pé bem na porta e ficou segurando, e quando veio um raio a espingarda não fez sombra nenhuma. E Jim disse:
"Olha, essa é muito interessante -muito interessante mesmo. Todo mundo diz que os fantasmas não têm sombra. Por que será? Agora eu já sei. É claro que os fantasmas são feitos de relâmpago, ou então os relâmpagos é que são feitos de fantasma -não sei qual dos dois. Bem que eu queria saber, Huck.
"Eu também; mas acho que não tem jeito da gente descobrir. Você já viu algum fantasma, Jim?
"Se eu já vi algum fantasma? Bem, acho que já vi sim.
"Ah, então me conta, Jim -me conta como é que foi.
"Essa tempestade está fazendo barulho demais, é tanta trovoada que nem dá para falar direito, mas eu vou tentar. Muito tempo atrás, quando eu tinha uns 16 anos, meu patrão, o jovem senhor William, que hoje já morreu, estudava para médico na cidade onde a gente morava. A escola era um prédio imenso de tijolo, com três andares de altura, e ficava sozinha no meio de um descampado, um pouco afastada da cidade. Pois bem, uma noite, no meio do inverno, o senhor William me disse para ir até a escola, subir até a sala de dissecação no segundo andar, esquentar um sujeito morto que estava deitado numa das mesas e amolecer o corpo para ele poder abrir -
"Para quê, Jim?
"Sei lá -devia ser para ver se encontrava alguma coisa dentro dele. De qualquer maneira, foi isso que ele falou para mim. E me disse para ficar lá mesmo, esperando até ele chegar. Aí eu peguei uma lanterna com uma vela dentro e saí andando lá do outro lado da cidade. Fazia muito frio e soprava um vento gelado com neve do lado de fora! Não tinha ninguém pela rua, e eu mal conseguia andar, de tão forte que era o vento. Era quase meia-noite e estava muito escuro.
"Eu fiquei muito satisfeito de ter chegado na escola, meu garoto. Destranquei a porta e subi a escada até a sala de dissecação. Era uma sala de uns 20 metros de comprimento por uns oito de largura; e por toda a parede, dos dois lados, tinha uns cabides com as capas pretas compridas que os estudantes vestiam quando abriam os mortos. Bem, eu levantei a lanterna para ver melhor, e as sombras das capas penduradas se espalharam e se encolheram pelas paredes, e eu fiquei com medo. Parecia que elas estavam sacudindo os braços para espantar o frio. Daí, eu parei de olhar para elas; mas fiquei achando que elas continuavam sacudindo aqueles braços, por trás de mim.
"Tinha uma mesa de uns dez metros de comprimento bem no meio da sala, com quatro mortos deitados em cima dela, de costas, com os joelhos para cima e cobertos com lençóis. O senhor William tinha pedido para eu esquentar o sujeito grande com as costeletas pretas. Eu levantei um lençol, e o morto não tinha costeletas. Mas estava com os olhos bem abertos, e eu tornei a cobrir o corpo bem depressa, pode acreditar. O outro era uma coisa tão horrível que eu quase deixei a lanterna cair no chão. Aí eu pulei um dos cadáver e fui direto para o último. Levantei o lençol e aí eu disse, pronto, chefe, é você mesmo que eu estava procurando. Ele tinha as costeletas pretas e era um sujeito bem grande, com cara de mau, feito um pirata. E nuzinho -todos eles estavam pelados. Estava deitado em cima de umas varas roliças, para poder ser empurrado. Eu tirei o lençol de cima dele e fui rolando ele em cima das varas, com os pés para a frente, até a ponta da mesa, bem perto da lareira. Ele estava com as pernas afastadas e os joelhos meio levantados; quando eu cheguei com ele na ponta da mesa, virei o corpo e pus ele sentado: ficou de um jeito bem natural, com os pés para a frente e os dedões esticados, parecia que estava querendo se esquentar. Eu escorei o homem com as varas, depois cobri as costas e a cabeça dele com o lençol para ajudar a esquentar mais depressa, e aí, quando estava amarrando as pontas do lençol por baixo do queixo dele, adivinha o que aconteceu! Ele abriu os olhos! Eu dei um pulo para trás e não conseguia tirar os olhos dele, tremendo de cima abaixo. Mas ele ficou com o olho parado, sem olhar para nada em especial e nem fazer mais nada, e aí eu vi que ele ainda estava bem morto mesmo.
"Mas não dava para ficar olhando para aqueles olhos, sabe como é. Aquilo me deixava muito nervoso. Então eu puxei o lençol para cobrir a cara dele toda, até o queixo, e amarrei as pontas com muita força -e aí ele ficou ali sentado, nu na frente, a cabeça parecendo uma bola de neve, com o lençol descendo pelas costas dele e depois se espalhando pela mesa. E ficou ali sentado, com as pernas abertas, mas não achei que tinha ficado muito melhor do que antes, com a cabeça enrolada daquela maneira de um jeito que era assim horrível.
"Mas os olhos estavam cobertos, e eu achei que o certo era deixar ele assim mesmo, sem tentar fazer nada para arrumar melhor. Eu me abaixei entre as pernas dele nas pedras do chão, tirei a vela de dentro da lanterna e levantei na mão para aumentar a luz. A lareira ainda tinha umas brasas, mas a lenha ficava toda empilhada do outro lado da sala. E, enquanto eu estava ali abaixado, me preparando para ir buscar a lenha, a chama da vela tremeu, e eu achei que o velho tinha mexido as pernas. Me deu um calafrio. Eu estendi a mão devagar e encostei na perna dele, que ficava logo atrás de mim do lado esquerdo, e estava gelada de tão fria. Depois eu encostei a mão na perna do meu lado direito e também estava totalmente fria. Você entendeu? Eu estava abaixado, de costas, bem no meio das pernas dele.
"Então, dali a pouco, eu achei que tinha visto ele mexer os dedos do pé; estavam bem na minha frente, dos dois lados da minha cabeça. Vou te contar uma coisa, menino, eu estava começando a ficar muito preocupado. Era um prédio imenso e antigo, todo vazio, só eu lá dentro, e aquele sujeito ali atrás, em cima de mim, com a cabeça enrolada no lençol, e o vento gemendo em volta da sala feito um espírito perturbado, e a neve batendo com força na janela; e aí o relógio bateu meia-noite na cidade, mas estava tão longe, e o vento abafou tanto o som que parecia um gemido -e só. E aí eu pensei, olha, eu só queria estar fora daqui; o que é que vai acontecer comigo? -e o sujeito lá, mexendo os dedos do pé, eu sei que estava-, eu meio que vi aqueles dedos mexendo -e eu meio que sentia os olhos dele me olhando, com aquela cabeça gorda enrolada no lençol, e aí-"
"Bem nessa hora, meu amigo, ele caiu por cima de mim, montado no meu ombro com aquelas pernas frias, e chutou a vela da minha mão!
"Minha nossa! E o que foi que você fez, Jim?
"Fiz? Eu não fiz é nada; só me levantei e saí correndo, no escuro mesmo. Eu é que não ia ficar ali para descobrir o que é que ele queria. Eu não; desci a escada num segundo e fui correndo até em casa, gritando sem parar.
"E o que é que o senhor William disse?
"Disse que eu era um bobalhão. Foi até lá e encontrou o morto deitado no chão, com todo o conforto. Pegou, abriu e cortou tudo o que queria. Desgraçado, bem que eu também queria ter dado uma facada nele.
"E por que foi que ele pulou no seu pescoço, Jim?
"O senhor William disse que eu não devia ter escorado ele muito bem com as varas. Mas eu não sei não. Aquilo não era jeito de um morto se comportar; podia ter matado alguém de susto.
"Mas Jim, não foi bem um fantasma -era só um morto. Você nunca viu um fantasma mesmo, de verdade?
"Claro que sim -um monte.
"Ah, então me conta, Jim.
"Certo, outra hora eu conto; mas agora a tempestade já está passando e é melhor a gente ir lá fora cuidar das linhas e ver se já está precisando trocar as iscas.

Tradução de SERGIO FLAKSMAN

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