São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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FHC e o sultão de Bagdá

JORGE DA CUNHA LIMA

Todo palácio é uma cidadela de alienação. O cerimonial, a guarda burocrática, a guarda pretoriana, os áulicos e a própria majestade do poder formam uma barreira clássica a impedir que o governante se relacione com a sociedade. Por isso mesmo, tornou-se lendária a figura do sultão de Bagdá que saía do seu palácio, noturnamente disfarçado de cidadão, para escutar, de corpo presente, os reclamos do povo.
Com esse hábito tornou-se um governante justo e eficiente, pois sábio já era. Falando com estudantes, peregrinos, mães, usurários, agiotas, sacerdotes e até poetas, percebeu que essas pessoas constituíam a massa crítica de um olhar pessoal sobre a sociedade, mas aperfeiçoado pela informação e pela realidade.
Brasília já dificulta a boa intenção do mais aplicado dos sultões, tanto pela distância do povo, que lá não constitui o mais amplo espectro de uma sociedade, quanto pela ausência de esquinas, onde a voz humana costuma cruzar-se formando a chamada opinião pública.
No Brasil, os longos anos de governo autoritário criaram um cerco no estamento republicano, tornando todos os governantes dependentes do aparato militar. Seja por questões de segurança, de liturgia ou das comodidades que uma casa militar proporciona ao chefe de Estado, tanto nos Estados, pelas polícias militares, quanto no Planalto, pelo Exército, o governante tornou-se um prisioneiro liberal dessa clausura.
Cidade de tantos poderes, além das sucursais da grande imprensa, Brasília absorve a atenção do governante no atendimento dessas instâncias de decisão. Zeloso que é, e de estilo conciliador num rinque de desafetos, FHC não transfere, e faz bem de não fazê-lo, a tarefa política da negociação. Sabe que, no Brasil, esta não se faz pela boa vontade, mas pela presença inteligente do poder. E isso não é delegável.
Além disso, FHC é essencialista, isto é, leva com obstinação o que considera condição "sine qua non" da salvação nacional, a estabilidade da moeda. Como todos os que transigiram com isso despencaram, ele não transigirá. E não transigindo, parece descuidar do social, em todos os seus matizes, das relações humanas em alguns dos seus matizes e de tudo o mais que parece essencial aos outros, mas não a ele.
Acrescente-se a essa "pièce de resistance" que é a estabilidade todas as reformas, econômica, administrativa, tributária, política, que o Congresso deve aprovar, com a contrapartida que tal aprovação carece. FHC recebe ministros, deputados, diplomatas, tudo o que a audiência formal do poder exige.
Mas FHC gosta da solidão do poder. E essa é a sua maneira pessoal de conviver com o intelectual, que é ele próprio. Por isso tudo, as transparentes grades do Alvorada transformaram-se, sem que o governante percebesse, em altíssimos muros que, se não o afastaram da lucidez, o distanciaram da realidade que transforma a lucidez em clarividência.
Sei que não é fácil conciliar o despacho com a convivência e mesmo fazer dela um instrumento útil ao exercício do mesmo, mas creio que o isolamento do senso comum é extremamente danoso ao homem público.
Uma vez sugeri ao presidente que fizesse o que Mitterrand fazia habitualmente. Quando havia um assunto muito grave na França, Mitterrand convidava para um café da manhã poetas, cineastas, empresários não carimbados, políticos de província etc., colocando na mesa, sem a presença de qualquer especialista, as questões mais bicudas como se devia ou não invadir a Bósnia.
Se FHC pulasse o muro do Alvorada, além de tudo o que já sabe, iria saber que as pequenas fresadoras da Ricardo Jafet, relativamente competitivas, não aguentam a concorrência de matérias-primas semi-acabadas que o Japão está exportando sem taxa para o Brasil; que alguns grandes bancos, numa atitude sem precedentes, telefonam aos clientes pichando outros bancos sólidos, desmoralizando o sistema financeiro.
Que algumas terríveis repercussões de atos governamentais, de amigos ou adversários, só chegam aos seus ouvidos à noite, quando a CBN passou o dia inteiro divulgando-as; que um honesto empresário recomenda aos colegas que mudem de "over", porque passou a vida inteira investindo, construindo fábricas, abrindo lojas e acabou fechando tudo, enquanto os que "só aplicaram" nadam nos juros; que o orçamento de R$ 2 bilhões para desapropriações agrícolas foi reduzido para cerca de R$ 30 milhões.
Pode ser que FHC saiba disso tudo, mas saber, no enfoque de realidade que o contato direto propicia, é bem mais forte do que no contato deformado com os "profissionais" de Brasília.
FHC já introduziu nos hábitos políticos do Planalto algumas novidades: o governo trabalha muito, é honesto, criou com a moeda estável um critério de valor, tem algum apreço pelas artes e conversa com as diversas instâncias do poder. Só falta uma coisa. Seguir o exemplo do sultão de Bagdá -que era um sociólogo amador- e fazer o que um sociólogo profissional sabe fazer como ninguém: ouvir de perto o interlocutor fundamental.

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