São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 1995
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Clara Nunes ganha homenagem mórbida

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REDAÇÃO

Mais um capítulo da série duetos do além: a EMI está lançando um CD em que a cantora Clara Nunes, morta em 1982, divide os vocais de seus sucessos com astros da MPB. O nome é de péssimo gosto: "Clara Nunes Com Vida".
É pena. A iniciativa de homenagear uma de nossas maiores cantoras é desperdiçada pela morbidez do tributo além-túmulo.
Não que o disco seja ruim. Acontece que é tudo mentira. Clara morreu, não há como negar. Os astros convidados (Chico, Gil e Milton) não estão com ela nas fotos do encarte, não cantam com ela. Mas, descontado o teor fúnebre -se é que é possível-, o disco revela mais altos que baixos.
Antes as más notícias: há o expressionismo barato de Alcione ("Sem Companhia", 80), a falta de voz de João Nogueira ("As Forças da Natureza", 77), e Emílio Santiago ("Menino Deus", 74), que é melhor nem comentar.
No front mais ou menos, Elba Ramalho surpreende por não gritar nenhuma vez em "Viola de Penedo" (80), João Bosco não surpreende por gemer por toda "Nação" (82) e Nana Caymmi vai para um lado enquanto Clara vai para outro no clássico "Na Linha do Mar" (79), de Paulinho da Viola.
Mas há também o sublime, mais presente na carreira de Clara que neste disco. Paulinho da Viola em pessoa se encarrega de sua "Coração Leviano" (77), num dueto que esperamos a vida toda.
Há Angela Maria, dramatizando a valer "À Flor da Pele" (77), e Roberto Ribeiro, que não compromete a delicadeza da letra de "Coisa da Antiga" (77).
E há Gil, na interpretação mais emocionada do disco, a do clássico "Ijexá" (82) -de chorar.
Paulinho e Gil fazem lembrar o que todo mundo esqueceu: equilibrando-se entre o plural de Gal e o drama de Bethânia (para não falar do dramalhão de Elis), Clara usou a sobriedade para criar algumas das mais comoventes interpretações da MPB enquanto vivia.
Daí se lembra também que ela foi fiel intérprete de compositores do calibre de Dorival Caymmi, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, Cartola, Candeia...
Quanto a isso, quem se dispuser a conhecer melhor Clara Nunes descobrirá que é ela e ninguém mais a maior influência feminina de Marisa Monte, que sabe onde recolher subsídios.
O disco esquece clássicos "O Mar Serenou" (75), não há as semitropicalistas músicas do disco "Clara Nunes", de 71, não há a inesquecível "Tristeza Pé no Chão" (74). Melhor assim.
A morbidez de "Com Vida" pode ser a senha para que a gravadora EMI, que detém o catálogo da cantora, tome vergonha na cara e torne disponível em CD sua antológica discografia. Esperemos.

Disco: Com Vida
Com: Clara Nunes e convidados
Lançamento: EMI
Preço: R$ 18 (o CD, em média)

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