São Paulo, sábado, 23 de setembro de 1995 |
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Cultura nordestina cresce com Suassuna
ANTONIO CALLADO
Eu não vejo Ariano com grande frequência. Ele detesta avião tanto quanto Oscar Niemeyer, mas Oscar fecha os olhos e vai administrar projetos seus em Paris, em Argel. Ariano Suassuna, tanto quanto me é dado ver e sentir quando o encontro, não parece enxergar nenhum pretexto válido para trocar Pernambuco, ou sua Paraíba, por qualquer outro lugar do mundo. Certas posições dele, aliás, parecem justificar o que ele sente e preza na auto-suficiência nordestina. Basta ter um mínimo de iniciativa. Por exemplo, há muita gente viajora e de paladar exigente que acha que sem ir até a França ninguém pode comer um queijo raro, sobretudo, como dizem, um "chèvre". Ora, acontece que na sua propriedade paraibana de Taperoá o próprio Ariano cria cabras e faz queijo do leite delas. Redondo, perfeito, saboroso, o queijo de Taperoá é além disso embalado num desenho armorial feito pelo próprio dramaturgo, romancista, poeta e mais doido dos secretários de Cultura de Pernambuco, cuja escolha foi uma das idéias luminosas do meu amigo e governador Miguel Arraes. Mas para dizer a verdade o que a afirmativa de Suassuna aos jornais me fazia lembrar era outro tipo de loucura sua -lido onde, definido por quem? O que minha memória me dizia é que outro inspirado da mesma terra nordestina havia descoberto há muito a loucura de Ariano. Ao voltar ao Rio procurei, na minha edição Aguilar de João Cabral de Melo Neto, e lá está o poema dedicado a Suassuna e que tem precisamente o mesmo título do grande romance "Pedra do Reino", que Ariano publicou em 1971. João Cabral dividiu seu poema em quatro cantos breves em que a terra nordestina de Ariano (e a dele) aparece num descarnado esplendor: "Foi bom saber-se que o Sertão/não só fala a língua do não", e termina numa composição que parece um soneto curto de oito em vez de 14 versos, pois João Cabral sempre prefere dizer menos que mais. Eis o fecho desse belo poema em que um poeta retrata o outro: "Sertanejo, nos explicaste/como gente à beira do quase/que habita caatingas sem mel/cria os romances de cordel:/o espaço mágico e feérico/sem o imediato e o famélico,/fantástico espaço suassuna/que ensina que o deserto funda". A verdade, podemos dizer, é que o atual doido que luta pela cultura em Pernambuco é, de fato, doido de paixão por essa cultura nordestina de fundas raízes, capaz de produzir na mesma geração Ariano e João, em cuja cabeça pousou, sem que ele estendesse a mão, a coroa de Bandeira, de Drummond. Neste momento, no Estado de João, Ariano, como secretário de Cultura, está criando com sua energia o espaço mágico e o feérico, sem o imediato e o famélico. Esse espaço, aliás, está sendo também criado por Arraes, que há de ser o herói de mil romances de cordel, com suas prisões, seu exílio, sua mania de voltar ao poder por dá cá aquela palha. Recebi de Ariano Suassuna, com capa de Samico e várias ilustrações preciosas, o "Projeto Cultural Pernambuco - Brasil". Desde a primeira página o belo livro nos provoca com a idéia da falta de qualquer genuíno progresso nas artes e imprime, na mesma página, uma "Vegetação sobre Rochas", de Paul Klee, e uma pintura rupestre nordestina: o autor das duas pinturas parece ser o mesmo. Nem sequer tentarei, aqui, resumir esse programa cultural que envolve o Quinteto Armorial, o Grupo Romançal, as escolas, os espetáculos. O livro do "Projeto Cultural" merece estar em todas as redações como modelo altamente original e culto. Como recebi a correspondência de Ariano em resposta a algumas perguntas minhas, quero aproveitar o espaço que me resta para comunicar aos povos que Ariano, como eu, é um grande admirador do chorinho carioca. Perguntei a ele, em minha carta, o que achava desses cantos cariocas que vêm de Joaquim Antonio Calado (por desgraça não é parente meu o autor de "Flor Amorosa") a Pixinguinha, do "Carinhoso" imortal. Pois transcrevo aqui o trecho da carta que me encheu de alegria: "Quanto a essa extraordinária manifestação cultural brasileira que é o 'choro', sou, como você, um admirador dele. Acho, inclusive, que os quintetos ou sextetos que nosso povo criou para executá-lo são perfeitos. "Nos últimos tempos em que dirigi o Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco, estava pensando em juntar um deles ao Quinteto Armorial, a fim de criar um conjunto apto a tocar a música brasileira de câmara. (...) "Agora, animado por suas palavras, vou retomar a idéia, nem que seja para homenageá-lo e palidamente retribuir sua generosa iniciativa". Aleluia. Viva o choro e os chorões. E, já que comecei este artigo com versos de João, vou encerrá-lo com um soneto de Ariano que devia estar em todas as nossas antologias. É dedicado ao pai dele, que morreu assassinado em conflito político. O soneto é de uma beleza estranha, como a daqueles puros-sangues enlutados, selados, mas sem seus cavaleiros, que seguem o enterro de heróis que os cavalgaram e foram mortos no campo de batalha: "Aqui reinava um Rei quando eu menino:/vestia ouro e castanho no gibão./Pedra-da-sorte sobre o meu Destino,/pulsava junto ao meu seu coração. "Para mim, seu cantar era divino,/quando, ao som da viola e do baião/cantava, com voz rouca, o Destino,/ o riso, o sangue e as mortes do Sertão. "Mas mataram meu pai. Desde esse dia/eu vivo como um cego, sem meu Guia,/que se foi para o Sol, transfigurado. "Sua efígie me queima. Eu sou a presa,/ele a brasa que impede ao fogo, acesa,/espada de ouro em pasto ensanguentado". Texto Anterior: Paulinho cita anônimos para platéia vazia Próximo Texto: Mulheres fazem a síntese do melhor teatro Índice |
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