São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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'Tristes tropiques'...

ROBERTO CAMPOS

'Tristes tropiques"...
"A história recente da privatização no Brasil se divide em três fases: a do dinamismo confuso de Fernando Collor; a da pasmaceira medíocre de Itamar Franco; e a de lerdeza elegante de FHC."
(Gilberto Paim)

Fernando Henrique Cardoso desenvolveu uma estranha teoria sobre a privatização: a lentidão é o caminho da perfeição. É exatamente o contrário. Cada dia que passa, quatro coisas acontecem: o patrimônio público deteriora-se, à míngua de investimentos; dá-se tempo para mobilização corporativista dos estatólatras; desrespeita-se o consumidor, afligido pelos maus serviços dos dinossauros; em alguns casos, como no de telecomunicações, acirra-se a concorrência no mercado de ações, depreciando-se as nossas em função da privatização de estatais européias. No caso da eletricidade, há perigo de racionamento, caso a economia volte a crescer sustentadamente. E os desperdícios e ineficiência de distribuição, hoje a cargo de estatais deficitárias, aumentam o "custo Brasil".
Não há político que não tenha orgasmos verbais pretendendo ser defensor do patrimônio público. Mas que é patrimônio público? Patrimônio é o que dá retorno. Nesse sentido, as empresas públicas não são patrimônio e sim encargos públicos. Numa perspectiva de longo prazo, verifica-se, por exemplo, que a melhor das estatais, a Vale do Rio Doce, pagou ao Tesouro Nacional, em 53 anos de vida, um retorno anual médio de 0,09%.
Não se sabe se isso é uma esmola ou uma gorjeta, mas certamente não é alta rentabilidade, a não ser para alguns senadores que nunca analisaram balanços. Mesmo a valorização patrimonial das ações foi medíocre -em média, 7,6% ao ano. Isso é pouco mais que o rendimento de uma caderneta de poupança e menos de um terço do custo atual de rolagem da dívida do Tesouro!
No caso dos outros dinossauros, espécimes mais jovens da era cretácea, o panorama é pior. Se tomarmos o último quadriênio para o qual há dados disponíveis na Sest (1990-1993), verificaremos que, deduzidos os aportes de capital e as dívidas honradas pelo Tesouro, a Vale pagou dividendos líquidos de 1,6% ao ano; a Petrossauro, de 0,69%; no caso da Eletrossauro e da Telessauro, o fluxo de caixa para o Tesouro foi negativo, a saber: 17,1% e 6,8%, respectivamente. Para nos conscientizarmos de que os dinossauros são um encargo público e não um patrimônio, basta lembrar que o Tesouro, deficitário, tem que sustentá-los rolando sua dívida a juros reais de quase 30% ao ano!
Aqui entra o que os economistas chamam de custo de oportunidade. O que se investe nas estatais, com baixíssimo retorno, é o que se deixa de investir no atendimento de carências básicas, como educação, saúde e habitação.
Alguns argumentos dos defensores da modorra estatolátrica são bizarros. Alega-se que a privatização inglesa levou mais tempo. A questão é que mrs. Thatcher era uma pioneira, tendo que desfazer décadas de intervencionismo estatal do "Labour Party". Engenhou-se toda uma teoria de privatização, a chamada micropolítica. Além disso, ela não tinha que rolar dívidas a juros reais de mais de 2% ao mês.
Hoje as privatizações são, mundialmente, uma rotina consolidada, com algumas inovações interessantes. A Rússia e a Tcheco-Eslováquia adotaram recentemente o sistema de privatização pela doação de ações ao público. Tinham melhor percepção que nós dessa ficção tecnocrática que é a rentabilidade das estatais...
A lerdeza elegante tem acobertado ímpetos expansionistas dos dinossauros, ansiosos por retardar (e, se possível, sabotar) as privatizações. A proposta orçamentária da União para 1996 prevê investimentos de R$ 10,93 bilhões para nossos velhos e conhecidos sauros -a Telessauro, a Eletrossauro, a Petrossauro e a Valessauro.
Quase metade dos recursos -45,5%- viria de fora das empresas: endividamento interno e externo e chamadas de capital (inclusive do Tesouro). A outra metade proviria de recursos próprios, designação generosa, pois em parte significa renúncia fiscal do Tesouro a impostos e dividendos que lhe seriam devidos. Obviamente, com um programa agressivo de privatizações, muitos desses investimentos poderiam ficar a cargo do setor privado. E o Fundo Social de Emergência poderia ser proporcionalmente reduzido, em benefício dos Estados.
Em alguns casos, há visível sabotagem do programa de privatização. É o que está acontecendo no sistema Telessauro, que tem instalações do Terceiro Mundo e serviços do Quarto Mundo. Hoje ele é administrado por xiitas, conhecidos por seu agressivo corporativismo e mediocridade técnica.
Monteiro Lobato costumava dizer que o Brasil tinha duas grandes cidades, Rio e São Paulo, separadas pela Central do Brasil. Quem, no horário de pique, tenta falar Rio-São Paulo ou Rio-Brasília não pode senão concluir que as cidades são separadas pela Embratel!
Mais ineficiente que a telefonia celular no Brasil, só a Previdência Social. No mundo todo, a telefonia celular é operada em regime de competição. Só aqui impera o monopólio estatal, que criou uma excentricidade: o celular-vaga-lume, no qual não é a luz e sim o som que pisca...
Considerando-se o castigo absurdo imposto ao público, seja pela longa espera, seja pelos altos preços, seja pelo mau serviço, é uma insolência que, ao invés de promover a rápida privatização, a Telessauro planeje expandir aceleradamente a rede pública celular, na esperança de ocupar espaço.
Ao invés de se concentrar na telefonia básica, onde a quebra do monopólio será demorada, e na telefonia rural, visando à universalização dos serviços, o que se propõe é o contrário. Obviamente, sem consulta ao consumidor, que preferiria celulares de tecnologia digital mais moderna, fornecidos por empresas privadas que possam ser multadas, processadas ou substituídas pelo competidor mais eficiente.
Os investimentos em telefonia rural, supostamente parte de função social da Telessauro, são insignificantes (0,4%). Se a Comissão Orçamentária do Congresso tiver algum bom senso, rejeitará "in limine" a obscena proposta dos corporativistas. Apressar-se-iam as licitações para a telefonia celular privada e os recursos públicos seriam redirecionados para a telefonia básica e rural, até que seja possível desmonopolizar esses serviços.
A lerdeza elegante de FHC contagiou vários setores. O Ministério de Minas e Energia até agora nada fez para regulamentar a flexibilização do monopólio da Petrossauro. O BNDES há três anos tem dúvidas hamletianas sobre como privatizar a Light e nem sequer contratou as consultorias para a inútil tarefa de avaliar a Valessauro (inútil, porque dezenas de bancos de investimento nacionais e estrangeiros avaliam diariamente a empresa na Bolsa de Valores).
O BC tardou tanto em liquidar o Banespa que o Estado de São Paulo teve tempo de mobilizar sua bancada para garantir ao governador tucano o direito de ter dois bancos, um dos quais financiado com o calote da dívida, disfarçado de empréstimo do Tesouro a perder de vista. "Tristes tropiques!"

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