São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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A poeta vê o Brasil

JOÃO ALMINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Brazil", primeiro publicado em Nova York em 1962, é um destes manuais com informações básicas sobre a cultura, a geografia, a história e a política do país. Segundo consta do volume, "o texto para os capítulos deste livro foi escrito por Elizabeth Bishop", embora os editores de "Life" tenham feito inúmeros "reparos e sugestões". É fácil perceber, pelo estilo e pelos temas, onde entra a contribuição mais pessoal da grande poeta norte-americana.
Não era o tipo de coisa que ela normalmente escreveria. Refere-se, aliás, ao trabalho de compor o livro como um pesadelo. Quando o projeto já estava adiantado, ela diz, numa carta ao poeta Robert Lowell, em 4 de abril de 1962 (publicada, como as demais cartas que aqui cito, em "One Art"), que "o livro 'Brazil' é um horror; algumas frases não fazem nenhum sentido". O Brasil, escreve a amigos após a publicação, "é bem mais complicado"do que o livro levaria o leitor a supor.
Escreveu por dinheiro. Ganhou US$ 9.000, além de passagens aéreas de primeira classe e diárias em Nova York por três semanas.
Com este contexto presente, temos de dar um desconto quando lemos seus comentários sobre o Brasil no tal manual. Ainda assim, vale a pena conferir, pois ali há algo que não encontramos em sua poesia.
É verdade que o livro de poemas "Questões de Viagem", publicado em 1965, tem toda uma parte dedicada ao Brasil. Existem os poemas de Ouro Preto. Mas o que está presente na poesia de Elizabeth Bishop sobre o Brasil é sobretudo a paisagem brasileira. Há também descrições de situações e de personagens brasileiros ("Manuelzinho"), das cenas urbanas de Ouro Preto ("Sob a janela: Ouro Preto") ou do Rio de Janeiro (a descrição de uma ida a uma padaria na Avenida Copacabana no poema "Indo à Padaria", em "Trabalho Não Coligido", 1969). Sua poesia recolhe as impressões de um entardecer em Santarém ("Santarém", incluído no livro "Poemas Novos", do ano de sua morte, 1979) ou lança o olhar aguçado sobre os pobres das favelas do Rio na história do ladrão assassino Micuçu, perseguido e morto por soldados do Exército no morro da Babilônia ("O Assaltante de Babilônia", em "Questões de Viagem").
Mas temos de ir a outras fontes, como o livro "Brazil", para ler que a tolerância e a moderação seriam grandes traços brasileiros e que o Brasil é um país de revoluções não sangrentas, de gente que "não gosta de brigar". Violência é vista como demais. Um homem é insultado por um estranho. O amigo lhe pergunta: 'Não ouviu de que ele chamou você? Você vai aceitar isso? Você é homem ou não é?' O homem responde, 'Sou homem, sim. Mas não fanaticamente'. Este é o verdadeiro temperamento brasileiro".
O contraste entre o Brasil e os EUA neste campo seria flagrante, segundo ela. Diz que, "em 1950, a conhecida dançarina Katherine Dunham não foi aceita num dos grandes hotéis em São Paulo, havendo o gerente assinalado que era contra a política do hotel admitir negros. Presumivelmente o hotel agira por deferência para com os preconceitos de sua clientela norte-americana. Mas da noite para o dia o incidente tornou-se um escândalo nacional, e embora a constituição brasileira já tivesse um artigo tornando tal discriminação uma ofensa civil, foi proposta (e mais tarde aprovada) uma lei determinando que seria a partir de então uma ofensa criminal. O fato de que o governo reagiu tão rapidamente diz muito sobre a atitude do Brasil em relação ao negro.
Enfim, "o povo brasileiro tem um gênio para o que é chamado de relações humanas" e isto se estenderia à aceitação do estrangeiro. Existiria "um respeito brasileiro interior por outros povos".
Sua visão do povo brasileiro é, enfim, bastante positiva: "Quem visita o Brasil concorda que os brasileiros comuns e médios são um povo maravilhoso, alegre, de temperamento doce, um povo espirituoso e paciente".
É claro, nem tudo é perfeito. É bem mais difícil, segundo ela, ser escritor no Brasil do que nos EUA. "Escrever é mal pago e há poucas bolsas e prêmios...".
Há outros senões. No Brasil, a tradição escravista tornou o trabalho físico mal visto. Mas o pior mesmo, para Bishop, é que o povo brasileiro vive na miséria e nunca teve o governo que deveria.

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