São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Pasteur vira 'griffe'

VINICIUS TORRES FREIRE
DE PARIS

Um olho na tradição, outro no mercado científico e tecnológico é a receita de atuação do Instituto Pasteur, implantada especialmente a partir do começo dos anos 90.
O instituto foi fundado em 1887 pelo próprio Louis Pasteur, que o dirigiu até a morte em 1895.
Em 1988, o Estado francês era responsável por 48% do orçamento do instituto, uma instituição privada e o mais respeitado órgão europeu de pesquisa em biologia. Outros 32% vinham da venda de produtos e de royalties.
Em 1994, os produtos e a marca "Pasteur" pagaram 43% dos custos, contra 34% da contribuição estatal (que cresceu 6% em termos absolutos no período).
O orçamento anual é de US$ 200 milhões, o dobro do que a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) dispõe anualmente e cerca de metade do que a USP gasta por ano.
Pesquisadores e administradores do instituto consideram que a "tradição Pasteur" de pesquisa, invocada a todo momento para fundamentar qualquer iniciativa da casa, está intimamente ligada à idéia de aplicação prática e mesmo industrial da ciência.
Pasteur fez pesquisa fundamental, criou vacinas e estudou a doença do vinho, a pedido do governo e agricultores franceses.
Cem anos após sua morte, seus seguidores cobram pelo uso da marca "Pasteur", o instituto tem um departamento para descobrir as pesquisas que podem dar lucro e outro se relaciona com a indústria de biotecnologia e remédios.
A pesquisa básica, no entanto, não é tolhida. Os "olheiros" do departamento de produtos acompanham os trabalhos e "descobrem" os que podem render aplicações práticas, informados das necessidades da indústria.
"A pesquisa fundamental, às vezes mesmo especulativa, é profundamente respeitada no Pasteur, escreveu num artigo um dos diretores do instituto, Jean-Pierre Changeux, um dos maiores neurobiólogos do mundo.
"Respeito à tradição e pesquisa de ponta são as características do instituto, diz Maxime Schwartz, diretor-geral do Pasteur.
A mesma tradição de pesquisa básica, pesquisa de ponta, aplicações práticas, prestígio científico e acuidade comercial estiveram na base da maior polêmica em que se envolveu o Pasteur -a da disputa sobre a autoria da identificação do vírus da Aids, que durou 11 anos.
Em 94, a Secretaria de Saúde dos EUA reconheceu que o vírus "descoberto" pelo americano Robert Gallo num laboratório dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA fazia parte de uma amostra enviada em 83 pela equipe de Luc Montagnier, diretor da área de Aids e Retrovírus do Pasteur.
O reconhecimento não acalmou apenas egos científicos. Modificou também o acordo de divisão dos royalties da venda dos testes de Aids que foram desenvolvidos a partir da identificação do HIV.
Com o novo acordo, a participação do Pasteur na divisão dos US$ 6 milhões anuais que rendem os testes passou de 37,5% para 50%.
"Olheiros" científicos
Os "olheiros" de futuros produtos do Pasteur trabalham no Centro Consultivo de Aplicações de Pesquisa (CCAR, sigla em francês) do instituto. Identificam talentos, pesquisas promissoras e analisam pedidos de apoio de equipes de cientistas que querem desenvolver um produto. Procuram também sócios na indústria.
Por meio do trabalho do CCAR, surgiu o último grande produto do Pasteur, neste ano: a vacina contra gastrites provocadas por uma bactéria. O trabalho foi "notado" em 88, quando os pesquisadores se ocupavam da duplicação dos genes da bactéria.
O Pasteur criou também laboratórios especializados de serviços, que foram desenvolvidos a partir de equipes com relacionamento frequente com a indústria.
Um deles, o Texcell, criado em 87, testa a potência e segurança de vacinas, a segurança de produtos biológicos usados em remédios e a conformidade de produtos com as normas da FDA -agência que regula drogas e alimentos nos EUA- e de seus equivalentes europeus e japoneses.
Outros departamentos pesquisam as necessidades da indústria e cuidam do relacionamento do instituto com as empresas privilegiadas na produção industrial de suas descobertas e no uso da marca registrada "Pasteur".
Hoje o instituto tem 262 patentes na área de biotecnologia, metade delas obtidas desde 1990.
Áreas de atuação
O Pasteur tem 2.743 funcionários, 1.120 deles cientistas, outros 158 engenheiros. Entre 1907 e 1965, oito dos pesquisadores ganharam prêmios Nobel.
As doenças infecciosas consomem 50% dos recursos humanos, técnicos e financeiros.
A Aids, sozinha, representa 10% do esforço do Pasteur, que aposta na criação de uma vacina contra a doença. Mas os outros 40% vão para doenças como dengue, febre amarela e malária. Recentemente, o instituto retomou os trabalhos sobre a gripe. A pesquisa básica em imunologia leva 25% dos recursos e os projetos de mapeamento genético, outros 15%.
Em associação com outros institutos, pesquisadores do Pasteur criaram vacinas contra a difteria e contra a hepatite B -hoje os pesquisadores procuram saber como o vírus da hepatite B provoca o câncer do fígado.
Outro dos novos produtos do Pasteur é o teste contra substâncias genotóxicas, produtos químicos que danificam genes (produzem cânceres e doenças hereditárias), o SOS-Cromotest. Os pesquisadores descobriram que existe um sistema celular de "conserto" que é acionado quando o material genético é danificado. O sistema SOS das células sintetiza proteínas de "conserto", que são, no entanto, dificilmente detectáveis.
Os pesquisadores substituíram o gene de uma das proteínas por um outro, "marcador", identificável nos laboratórios. Ao adicionar material tóxico numa cultura de células com o marcador, pode-se testar a toxicidade de um produto: a célula "fabrica" as proteínas de "conserto", que podem ser observadas graças ao marcador.
Uma pesquisa que começou com o mapeamento genético de bactérias obscuras pode, assim, acabar tapando a boca de uma nova chaminé tóxica.

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