São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Uma cultura diferente do cinema

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A cultura do cinema se infiltra por toda parte, da memória mais íntima à roupa que se veste, a cultura fílmica, uns poucos campos apenas: a universidade, os livros, um ou outro mais. São diferenças nada pequenas, no entanto nem sempre percebidas. Nenhuma outra arte tem nada igual. Cinema é paixão pública, enquanto as outras artes são, muito, segredos quase privados. É justo que exista essa cultura do cinema.
É em primeiro lugar para este duplo universo que "Folha Conta 100 Anos de Cinema" chama a atenção do leitor. Não o faz declaradamente, mas em sua estrutura que não se anuncia. O título do livro é fiel a seu conteúdo: é um livro sobre cinema, mais do que sobre filmes. Um terço dos textos apenas é dedicado a filmes nomeados individualmente; o restante tem por título nomes de diretores (com exceção de um sobre uma atriz, um sobre Hollywood e três de caráter genérico). E, aqui, o livro mostra ao leitor sua segunda camada, a dos diversos caminhos da crítica. Dos textos que falam sobre filmes, talvez um único desenvolve uma análise fílmica propriamente dita ("Cabra Marcado Para Morrer", de Jean-Claude Bernardet). Os demais adotam métodos de abordagem elásticos o suficiente para permitir a inclusão, na análise ou no comentário, de vários aspectos extrafílmicos. Ora é importante o contexto histórico, ora o livro que deu origem ao filme, em outras passagens é a história pessoal do crítico que se funde com a proposta cinematográfica da obra discutida.
E não é menos diversificado o tratamento dos textos dedicados aos diretores. Há desde grandes fofocas sobre a vida pessoal e profissional do realizador ("John Huston", de Paulo Francis) a ensaios filosóficos sobre o cinema. Os temas também se multiplicam: sexo, psicologia, autoria de roteiros, Embrafilme. Une todos estes diferentes textos um traço em comum, nítido no desenho interior do livro e que poderia ser sua tese não anunciada: cinema é, antes de mais nada, uma questão de autor. Anos de orientação materialista-histórica e, depois, estruturalista não foram suficientes para abalar a noção de que cinema, o bom cinema, é em primeiro lugar um bom autor, uma personalidade, uma visão particular de mundo -um estilo.
Esta diversidade de tratamentos, a primazia dada aos autores sobre os filmes, não são deméritos do livro. Pelo contrário. Os horizontes dos filmes e sua moldura que é a cultura do cinema são vastíssimos e será apenas pela justaposição das entradas diferentes, e não pela insistência em teorias unificatórias, que se poderá ter alguma idéia, mesmo alucinada, desse dispositivo cultural. Claro, o livro não pode contar tudo. Mas o que conta é suficientemente amplo para sugerir o que aconteceu nas telas e fora delas nestes cem anos. Há um capítulo sobre o cinema mudo, outro sobre Hollywood, um terceiro para os cinemas novos e um último pontua o cinema contemporâneo.
Escritos para o jornal que morre a cada dia, os textos no entanto ainda se sustentam. É exatamente essa efemeridade, afinal relativizada, que dá ao livro certos momentos historicamente destacados. Um deles, o lembrado pelos dois textos do Glauber Rocha da época em que escrevia com Ys, Ks e Zs. Outro, as resenhas sobre "O Ano Passado em Marienbad", de Alain Resnais, e "Acossado", de Godard, escritas no lançamento dos filmes e que não ocultam, sob a boa vontade do crítico, sua perplexidade com o novo cinema e seu despreparo para comentá-lo e que em nada devem ter ajudado os que, naquele instante, nos fascinamos com a nova estética que é ainda hoje tão incômoda para tantos.
O terceiro aspecto que o livro mostra ao leitor, outra vez sem dizê-lo explicitamente, é o das relações entre um jornal, os filmes e o cinema: há textos curtíssimos ao lado de outros longos que o jornal soube acolher; há universitários escrevendo ao lado de jornalistas e cineastas; há assuntos cinematográficos que se poderia esperar encontrar num jornal e outros que nem tanto.
Acima de tudo, o livro mostra que, pelo menos no período coberto pela coletânea -1961/1995- o jornal abriu um espaço para certo tipo de cinema que dificilmente o leitor encontraria em outros recursos editoriais num país onde a bibliografia cinematográfica é ridiculamente reduzida. O jornal assume aqui um papel de equilibrador cultural, resgatado do limbo cotidiano por coletâneas como esta.
E há, enfim, o quarto cenário do livro, que é o dos próprios filmes e diretores nele abordados. É uma lista expressiva. Como não pode ser exaustiva, cada leitor fará sua relação dos ausentes. O cinema brasileiro (filmes e diretores), por exemplo, aparece pouco. O suficiente? O jornal teria coberto pouco o cinema brasileiro? Ou os críticos não teriam escrito textos interessantes sobre o tema? E ainda: o livro cobre três décadas de críticas, de 60 a 90 (embora a maioria seja dos anos 80). É, portanto, sobre vários tópicos, um livro retrospectivo. O texto sobre "Deus e o Diabo na Terra do Sol" é de 1994; o que disse a crítica da época, se houve alguma? Mas estas são questões que o livro dá a pensar: as respostas são muitas, como muitos os livros que poderiam ser feitos segundo o mesmo princípio. Importa é que aquilo que o livro dá a ler já é bastante atraente e relevante -para quem gosta de filmes e para quem gosta da cultura do cinema.

A OBRA
Folha Conta Cem Anos de Cinema, org. Amir Labaki, 240 págs. Editora Imago (r. Santos Rodrigues, 201-a, Rio de Janeiro, CEP 20250-430, tel. 021/293-1092). R$ 25,00

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