São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995 |
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A íntima ligação entre a loucura da arte e a arte da loucura
KATIA CANTON
Afinal de contas, a discussão sobre o significado de arte e loucura e da validade de se conservar esse tipo de produção em museus está intimamente ligado ao fato de a grande estrela escolhida para representar o Brasil no centenário da Bienal de Veneza -evento do século no cenário internacional- ter sido Arthur Bispo do Rosário (1989). E a escolha não foi feita ao acaso. O sergipano Bispo (1911-1989) era considerado paranóico-esquizóide e passou a maior parte de sua vida em um hospital psiquiátrico. Produziu freneticamente, transformando tudo que permeava seu dia-a-dia em objeto de arte. Nele estavam congas, sandálias havaianas, blue jeans, bordados, garrafas, jornais, camas, fitas. Para o curador brasileiro Nelson Aguilar, "Bispo entra nos Giardini para atestar a autenticidade de instalações, a eficácia de suportes inusuais". E para desafiar a noção vigente de arte e identidade, limitada a produção branca, ocidental, racionalista. O livro de João Frayse-Pereira transita pela loucura da arte e pela arte da loucura com intimidade e fluência. Estuda o pensamento ocidental em relação à questão da loucura, da visão romântica à pós-moderna; observa a percepção da arte pelo público que frequenta espaços institucionais -especificamente, a mostra "Arte Incomum" da 16ª Bienal de São Paulo (1981) e o Museu do Inconsciente do Rio de Janeiro; finalmente traduz a visão privilegiada de pensadores como Nise da Silveira, Mário Pedrosa, Jena Dubuffet, Freud, Michel Foucault. Quando comenta a opção do curador da Bienal de São Paulo de 1981, Walter Zanini, pela mostra de "Arte Incomum", Frayse-Pereira explicita que sua intenção era despertar o público "para uma produção altamente criativa, mas não de "provocar confronto entre duas realidades antagônicas: as tendências contemporâneas da arte e as obras e a documentação da 'Arte Incomum'". No entanto, como comenta o autor, esse tipo de confronto torna-se inevitável no momento em que se insere esse tipo de produção "no interior de um espaço cultural para o qual essa arte é incomum". Esmiuçando essas contradições com eloquência e poesia, o livro evolui como um documento corajoso. Sua coragem está na forma lúcida com que encara a mitologia existente por trás da imagem do louco, do bom selvagem, do "criador virgem". A sociedade contemporânea precisa negar a si mesma criando mitos marginais. Ao mesmo tempo, fazendo isso, colocando-os à margem, domestica e esvazia sua capacidade verdadeiramente transformadora e subversiva. Frayse-Pereira cita Proust para atestar que, incorporada pela cultura, a loucura é transfigurada pela aura que envolve as suas obras. Como diz Annnateresa Fabris no prefácio do livro, "a idéia da subversão pela criação é uma forma ardilosa de resgatar a sociedade daquela condenação ao silêncio que foi imposta aos que não podiam ou não queriam pautar-se por suas normas". O título "Olho d'Água, remetendo a algo que brota do subterrâneo e jorra continuamente, sugere a intensidade obsessiva de quem produz essa arte e de quem a questiona, tentando desvendar suas relações multifacetadas e contraditórias. Assim funciona o livro de João Frayse-Pereira. Comprometido com as perguntas "o que é arte? o que é loucura? por que resgatar esse tipo de produção entre quatro paredes de um museu?", ele se torna obrigatório para todo aquele que, além dos clichês, se interessa em pensar o "sentido da arte". A OBRA Olho D'Água - Arte e Loucura em Exposição, de João Frayse-Pereira, Prefácio de Annateresa Frabris, 188 págs. Editora Escuta (r. dr. Homem de Mello, 351, São Paulo, CEP 05007-001, tel 011/65-8950). R$ 30,00 Texto Anterior: Uma cultura diferente do cinema Próximo Texto: O marginal e o institucional unidos na vanguarda do entretenimento Índice |
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