São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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A busca da fertilidade perdida

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

Antes de começar suas "Bacantes", José Celso Martinez Corrêa, se concentra. Atrás da boca de entrada no palco do teatro de arena de Ribeirão Preto, numa noite quente de agosto, ele está ali, nu, de tênis, abraçado a uma árvore. É quase hora do início do espetáculo. Os músicos a essa altura ainda não sabem como vão entrar, abrindo a peça.
Os integrantes da banda procuram o diretor, mas se retraem ante o ritual particular de Zé Celso. Enquanto aguardam, divertem-se ali ao lado, batendo uma bolinha de ar. De repente, o diretor larga a árvore: "É isso. Vocês vão entrar assim mesmo, batendo bola!".
Tudo resolvido, exceto para um dos músicos. Ele tinha que convencer a namorada, cantora e bacante, a não aceitar ficar nua, na cena em que todas se despem e sobem em meio ao público pelas arquibancadas do teatro de arena.
O músico não queria de jeito nenhum que a namorada aparecesse pelada. A bacante estava em dúvida. Pouco antes do início da peça, ela optou. Era um trabalho teatral, ia tirar a roupa, como as outras bacantes do coro.
Ao saber, o rapaz se enfurece. Dá um bico na parede. Quebra o pé. E depois ainda teve que assistir com os outros a namorada tirar a roupa.
A nudez, sem trocadilho, abunda nas "Bacantes". É uma peça jovem, com o clima de um happening dos anos 60, com imenso apelo para a platéia de todas as idades que compareceu ao teatro de arena, localizado no bosque, no alto de um morro que fica bem no centro da cidade de Ribeirão Preto.
Texto de Eurípides, "As Bacantes" aborda o conflito de um deus, Dionísio, com o governante da cidade de Tebas, Penteu. Este resiste a reconhecer e autorizar o culto dionisíaco em suas terras.
Penteu duvida de sua divindade, acha que os seguidores de Dionísio que se reúnem em bacanais no alto do morro nas franjas de Tebas estão apenas cometendo imoralidades. Considera que Dionísio na verdade não existe, que não é filho de Zeus, mas resultado de um estratagema cometido pela mãe, a mortal Semele, para simular a divindade.
Quando a maioria das mulheres da cidade se amontoam no monte Citerão, para tomar parte nas orgias de Dionísio, Penteu faz de tudo para impedi-las. Mas o frenesi, e os poderes do deus que realiza milagres por intermédio das mulheres, torna-as fortes até para enfrentar um exército. A energia aterradora do coro de mulheres bacantes, de suas músicas encantadas, de seu transe extático, artístico, libidinoso, descontrolado, amalucado, contrasta com a pobreza da existência humana, restringida pelos constrangimentos de uma mentalidade estagnada e estéril.
No monte, da árvore em que observava a folia bacante, Penteu é arremessado ao ar, seu corpo retalhado em pedaços. Inadvertida, a mãe Agave, interpretada na peça por Denise Assunção, tem papel de destaque na morte do próprio filho.
Presencia-se a luta de uma crença recente para se impor contra a aliança de religiões mais antigas e o poder temporal. Tem a ver com o momento atual, mas fala de maneira mais geral de épocas em que novas crenças ocupam o lugar de ritos obsoletos.
As orgias báquicas, origem do teatro, estão fundadas em cerimônias arcaicas de louvor à fecundidade e à fertilização da terra, em que o êxtase e o entusiasmo banham-se de sagrado.
Penteu adentra a cena por um palco italiano. É um corpo estranho naquela arena colocada em transe pelo teatro de estádio do Oficina, com volumosas e até elaboradas movimentações de atores, as músicas, as cantorias e a incitação à participação do público.
No palquinho, Penteu é recebido por vaias gerais, como aquelas em que os jurados de programas de calouros são saudados pelas macacas de auditório. Ele surge de terno neoliberal, guardião do dinheiro, bonequinho de palco italiano, exterminador da arte e da cultura. Há óbvias referências à estreiteza da ação do governo tucano de São Paulo no campo da cultura.
É coerente com a atitude cultural radicalmente avessa ao establishment mantida pelo Oficina desde os anos 60. Mas a política não é seu objetivo maior. A montagem das "Bacantes" está destinada a buscar a força do teatro. Não da força do teatro de 30 anos atrás, que isso é pouco para a ambição de Zé Celso e seu grupo. Eles parecem querer destruir uma civilização, uma cultura, que, segundo sua visão, está morta. Destruir essa cultura implica pôr ao chão seu símbolo teatral, o palco italiano.
No lugar dele, o anfiteatro grego propõe uma experiência dramática renovada, que Zé Celso pretende seja o futuro do teatro. É como sugere Friedrich Nietzsche, em "A Origem da Tragédia", citado por Mauro Meiches em sua tese "Psicanálise e Teatro: Uma Pulsionalidade Especular". Diz Nietzsche: "No teatro antigo, graças aos degraus sobrepostos em arcos concêntricos, cada qual podia muito facilmente deixar de ver o ambiente civilizado em que se encontrava, para se entregar totalmente à embriaguez da contemplação do espetáculo, para se imaginar um dos elementos do coro". Há implícita uma proposição cultural abrangente, em que o idílio bacante, o distanciamento em relação à civilização é a própria razão de ser do novo teatro.
A novidade religiosa trazida por Dionísio é abraçada por Tirésias, o profeta, e por Cadmo, o fundador e primeiro rei de Tebas. Ambos são velhos e dispostos a abraçar o novo. Zé Celso interpreta um Tirésias ao mesmo tempo velho e infantil. As pernas finas folgam no calção, lembrando um bebê de cabelos brancos a balançar os "cambitinhos" na fralda larga. Sua figura magra e pálida, perene, vinda da alvorada da aventura grega, paira dominante sobre o espetáculo, a que parece ter chegado depois de viajar nos tempos, tanto no papel de profeta como na função de diretor em cena.
Desde o retorno com "As Boas", em 1993, "Bacantes" é o espetáculo mais eficiente em termos teatrais que o Oficina realiza. Embalado por ondas sucessivas e concomitantes de energia, comicidade e erotismo, o público parece às vezes num estado de iminente descontrole. E não é disso que se trata quando a bacante Alleyona Cavali se esfrega frenética no colo do prefeito de Ribeirão Preto, Antonio Palocci Filho? Por vezes, tem-se a sensação de que a platéia, animada e sutilmente embalada pela profusão emocionante de símbolos, emblemas, convites e alegrias, está prestes a deixar seus lugares, e de duas uma: sair do teatro ou se coroar de hera agarrada a uma bacante nua nas águas do fosso em torno da arena central. Fica a impressão de que, só se isso ocorresse, o esforço do Oficina estaria recompensado, a ruptura da passividade do público pela rejeição moral ou a adesão carnal.
Mas será que isso é tão necessário, depois de tão enérgica comunhão com a entusiasmada platéia da comunidade de Ribeirão Preto? Soa improvável a existência de algum grupo tão disposto a explorar os limites do teatro e da vida, a expor com tal sinceridade e confiança sua loucura em público como o Oficina. Daí vem o sucesso de sua apresentação única até agora.
Paradoxalmente, "Bacantes" constitui também, talvez pela rapidez com que foi montado para um festival de teatro grego patrocinado pelo Sesc, o espetáculo mais controlado, mais cerebral e estratégico que o a companhia realiza desde "Hamlet".
Talvez a intenção de ser coerente com a total conciliação final entre Apolo e Dionísio tenha obstaculizado as possibilidades dramáticas de um bacanal ainda maior, o que o texto permitia e, deve-se admitir, dificilmente seria considerada um exagero numa montagem de "Bacantes" dirigida por Zé Celso.
A ambição da peça é destruir o drama e a dramaturgia, desmantelar o palco italiano, para alcançar a "tragycomediorgya" (na peculiar escrita de Zé Celso).
O Oficina quer recuperar a vitalidade existente na origem do teatro. A julgar pela reação da platéia após mais de três horas de espetáculo, está em bom caminho. Zé Celso e grupo não se abstiveram de assumir a fundo uma co-autoria com Eurípides, sendo assim profundamente fiéis ao espírito do texto original. Depois de Ribeirão Preto e do patrocínio do Sesc, o coro de bacantes se dispersou, os músicos da banda também e "Bacantes" pode não vir a ser encenada em São Paulo, se o núcleo central da companhia não tiver apoio e energia para forjar um novo parto das cinzas do velho teatro.

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