São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Raças e diálogo

Pesquisas de opinião desenvolvem democracia

GUSTAVO VENTURI
DIRETOR DE OPERAÇÕES DO DATAFOLHA

Vou te fazer uma pergunta idiota como aquela:/ você já foi ou já morou dentro de uma favela,/ ou será que só conhece o lado bom da sua boa vida/ que é fazer pesquisa, pra Folha ser vendida?

As críticas dirigidas à pesquisa de opinião do Datafolha que deu suporte ao caderno "Racismo Cordial" (Folha, 25/6) podem ser agrupadas em dois blocos: alguns acharam parte da pesquisa mal feita ou mal interpretada, outros acharam tudo uma bobagem inútil, reforçando o racismo que se pretendeu investigar.
No primeiro grupo, destacam-se o historiador da USP Nicolau Sevcenko, que, com propriedade, afirmou estranhar "a expressão racismo cordial, que me parece um paradoxo, já que todo ato de racismo é, por definição, abominável". Assim manifestaram-se também o antropólogo e senador (PDT-RJ) Darcy Ribeiro, para quem "a pesquisa demonstrou a existência de um racismo feroz", e seu suplente, o escritor Abdias Nascimento, ao ressaltar que "o racismo no Brasil não é exatamente cordial" (Folha de 26/6, às págs. 1-10).
Entre os críticos das perguntas elaboradas para captar o preconceito racial de forma indireta, destaco três leitores: para Guilherme Greenhalgh da Matta, de Niterói (RJ), a concordância com a frase "uma coisa boa do povo é a mistura de raças, ao contrário do que foi feito, deveria ter sido classificada como preconceituosa, posto que "já houve teóricos que defenderam essa solução para os problemas raciais brasileiros" -observação que aponta para a necessidade de se desdobrar o sentido, para cada entrevistado, da eventual concordância com os aspectos aparentemente positivos da miscigenação racial.
O assinante Antonio Alcazar escreveu de São Paulo para "denunciar a insuficiência do questionário publicado", posto que, contrário a qualquer político ou chefe, "seja lá qual for a sua cor", entende que seu comportamento "favorece a igualdade e, consequentemente, a justiça social, pelo que não se justifica que eu seja enquadrado na categoria de quem 'manifesta um pouco de preconceito' (ao admitir que não votaria em um negro), pois no mais minha pontuação foi zero". Preocupação compreensível, mas, fosse ele abordado na pesquisa, salvo erro na aplicação da entrevista ou de codificação, iria para a categoria de "outras respostas", não lhe cabendo nenhum ponto de preconceito por sua postura.
Por fim, o escritor José Augusto Carvalho alertou, de Vitória (ES), que "a tradição linguística pode levar à resposta inconsciente, intuitiva, como o ateu que diga 'graças a Deus!', não por convicção, mas pela força interjetiva da expressão, sem implicar necessariamente a crença do falante. Assim, o Datafolha teria errado ao considerar preconceituosa a concordância com frases como "negro bom é negro de alma branca", ou "negro, quando não faz besteira na entrada, faz na saída". Invertendo seu argumento, diria que, justamente pelo componente inconsciente que carrega, a linguagem pode ser privilegiada para a detecção de preconceitos, posto que estes, pré-reflexivos por definição, também se nutrem da tradição.
Mas, mais do que pretender esgotar as discussões levantadas por estas críticas, cito-as para exemplificar a natureza dos problemas que, como pesquisadores, enfrentamos para dar conta do que nos solicitara a redação da Folha: quantificar a extensão do preconceito racial no país, sabendo, desde logo, que poucos o confessaram, posto que, como qualquer outro preconceito, é socialmente condenável pelas convenções morais. Chegamos a uma medida objetiva e definitiva do tamanho do preconceito racial no Brasil de hoje? Certamente não. Outras perguntas, ou outra leitura dos dados obtidos, como apontaram os leitores citados, chegariam a um resultado diferente.
Ora, qual é então a validade deste levantamento e de sua publicação na Folha? O que se propôs com a pesquisa foi a elaboração de um paradigma para a mensuração do preconceito racial em escala nacional, de maneira que a repetição de levantamentos semelhantes no futuro permita saber, com a mesma imprecisão desse instrumento tosco, o quanto evoluímos ou involuímos neste emblemático indicador de nosso grau de civilidade e qualidade de vida.
Já do ponto de vista da publicação, é evidente que, com base nos resultados da pesquisa, a ênfase esteve na denúncia da "chaga do racismo", ou do "mito da democracia racial brasileira" -para usarmos frases do editorial da Folha no mesmo dia. Mas será que o tiro foi em vão, ou pior, saiu pela culatra? De fato, uma ou outra é a opinião do segundo grupo de críticos. De Boa Vista (RR), Valderez Delfino Bezerra reclamou a busca de "soluções para integrar o negro na sociedade brasileira", acrescentando que "o negro precisa de ajuda por parte da imprensa, não de sensacionalismo em cima de um tema que todos sabemos verdadeiro". No mesmo tom o poeta e artista plástico Nuno Ramos, autor da premiada instalação "111", afirmou que "a pesquisa dá números a coisa óbvias..., mas não aponta solução para nada. É bacana, mas é inútil" (Folha, 26/6).
É possível que Nuno tenha transferido a angústia que deve sentir pelo fato de sua instalação ter denunciado, até no exterior, o massacre ainda impune do Carandiru, sem ter podido apontar soluções para o problema carcerário no país. Mas é evidente que isto não tira valor de sua obra, posto que a busca de soluções, imagino, não era seu propósito. Analogamente, diante de sua natureza e do que se propunha, a pesquisa não tinha como apontar soluções, como também gostaria Valderez.
O sociólogo Florestan Fernandes -ele também bastante crítico do uso do termo racismo cordial-, com a autoridade do pioneirismo dos seus estudos sobre o racismo no país e com o rigor conceitual que marcou seus textos, situou esta questão ao afirmar que a publicação "possui um significado histórico. ... Produto de pesquisa estatística, esclarece que toda a sociedade brasileira é atingida pelo racismo... Trata-se, pois, de uma contribuição empírica positiva à descrição de nossa realidade" (Folha, 10/7, págs. 1-2, grifo meu).
Finalmente, há os críticos para quem a pesquisa e a publicação vieram reforçar o preconceito racial que pretendiam investigar. "A Folha, ao publicar as suas pseudodenúncias sobre racismo, nada mais faz do que aumentá-lo", escreveu, de São Paulo, a leitora Helena Patrício. Esta foi também a opinião de Milton Santos, professor-titular de geografia humana da USP, presente em entrevista na página oito do próprio caderno "Racismo Cordial".
Para Milton, essencialmente a pesquisa 1) buscou atender os interesses mercadológicos da Folha e 2) veio reforçar o preconceito racial, pois seria "fundada nos preconceitos" e não teria a validade científica que pretende. "A maior parte das questões colocadas serve a uma estratégia de marketing (da Folha), não a um trabalho social. Essa é a minha crítica central. (...) Acho que o resultado dessa pesquisa é criar outros preconceitos. Pior do que os anteriores, porque aparentemente se tornam científicos. Eu... contesto a idéia de pesquisa para testar esse tipo de questão".
Luís Marcelo, do grupo Rap Geral de Piracicaba (SP), também levantou a questão da motivação mercadológica: "Será que o Datafolha não está querendo vender mais o seu jornal?", perguntou em carta enviada "em repúdio à matéria idiota, ou seja, às perguntas idiotas que o Datafolha fez".
Ora, não é nada surpreendente que um veículo de comunicação que assumidamente exalta e vive do mercado, como a Folha, tenha uma estratégia de marketing. Do ponto de vista da construção da cidadania, interessa mais é saber se são preferíveis veículos que buscam afirmar sua identidade mexendo em temas socialmente explosivos, como o do racismo, ou ignorando-os.
Quanto ao reforço dos preconceitos, o leitor Antonio Leite Jaguá, de São Paulo, manifestou sua surpresa com a posição de Milton Santos: "Quer me parecer que o professor não quer falar claramente sobre a questão racial em nosso país", escreveu. De fato, é surpreendente que Milton, reconhecido por sua produção científica, tenha manifestado postura aparentemente tão obscurantista, contrária ao desafio em si de mensurar a extensão do preconceito no país.
Como sua obra e militância não nos autorizam a afirmar que Milton quis escamotear a discussão do racismo, resta a conclusão de que o equívoco de sua atitude assenta-se na concepção de indivíduo nela pressuposta. Certamente a pesquisa não tornou o professor Milton ou a leitora Helena preconceituosos. Tão pouco Luis Marcelo, para quem a revolta com a publicação chegou a inspirar o rap que nos enviou. Conscientes, eles até manifestaram sua preocupação com este efeito da publicação sobre outras pessoas. E aqui está o problema: nesta postura, a burrice ou ingenuidade, a incompetência para a reflexão crítica, estão sempre nos outros, que por isso devem ser protegidos.
Ocorre que ainda que se discorde do tratamento dado à questão na produção e edição das reportagens e dados divulgados, é pouco plausível supor que entre os quase cinco milhões de leitores do "Folhão" daquele domingo tenha ocorrido mais o reforço de preconceitos do que reflexões críticas sobre o tema. Noutras palavras, ainda que se admitisse como único objetivo da Folha a venda de mais jornal, o que importa é o volume social de discussão sobre racismo que o caderno pode ter provocado.
Até o momento parece que não há outro caminho para a democracia, inclusive racial -e ainda para a ciência-, que não o diálogo, o confronto de idéias, a consequente desestabilização dos preconceitos e a construção de novos paradigmas.

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