São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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O lado oculto de um cineasta

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O cinema documental de Nagisa Oshima mostra uma face interessante desse cineasta basicamente de ficção, que se notabilizou por filmes de apologia do sexo e do crime, como "Conto Cruel da Juventude". Nos documentários que dirigiu para a televisão japonesa, entre 1962 e 1977, fica afinal evidente que por trás de tudo sempre esteve a intenção política. Ou seja: uma crítica feroz ao sistema japonês que resultou no desastre da Segunda Guerra Mundial.
Com uma câmera na mão e muito pouco dinheiro no bolso, Oshima partiu pela Ásia afora. Pesquisou os coreanos, vítimas do imperialismo japonês durante a guerra e até hoje ainda não ressarcidos das imensas perdas sofridas. Entrevistou o soldado japonês solitário, escondido por 28 anos na ilha de Guam, sem saber que a guerra tinha acabado. Esteve em Bangladesh e no Vietnã, no calor de combates e revoluções. E refletiu ainda sobre Mao Tsetung e o comunismo na China.
O resultado foi uma revolução no estilo de documentário japonês, que raramente ousara tocar na dolorosa ferida que é a responsabilidade do Japão na guerra. Esse trabalho de fôlego, que estará sendo em parte exibido no MIS (Museu da Imagem e do Som) e no Cinusp Paulo Emílio, foi longamente comentado por Oshima na entrevista a seguir que me concedeu em 14 de maio de 1992, em Tóquio, e até o momento inédita.

Folha - Como começou a se interessar por documentários?
Nagisa Oshima - Na época em que eu era assistente de direção nos estúdios Shochiku, acabei me convencendo de que o documentário poderia ser um modo de mudar o estilo corriqueiro do cinema japonês. Tinha dois elementos em mente: um era o documentário e o outro, o surrealismo. Eu queria trazê-los para meus filmes e comecei filmando documentários. Naquela época, era muito difícil ver documentários estrangeiros aqui, mas me juntei a um grupo composto de assistentes de direção e críticos, que se interessavam por documentários. Também me liguei a duas revistas do cinema: "Eiga Hihyo" (crítica de filmes) e "Kiroku Eiga" (documentário); participava de suas reuniões e via alguns documentários.
Folha - Havia alguma tradição de documentários japoneses que o senhor ou outros cineastas de sua geração pudessem seguir?
Oshima - Os documentários japoneses começaram antes da Segunda Guerra Mundial, por volta de 1930, e basicamente os diretores cooperavam com o governo, enquanto filmavam a guerra e o desenvolvimento da invasão japonesa na China e Manchúria. Apesar de existirem documentaristas de esquerda desde os anos 20, filmando greves ou manifestações socialistas no Primeiro de Maio, os documentaristas, como Fumio Kamei, que também faziam filmes encomendados pelo governo. Muitos comunistas trabalharam com esses documentaristas durante a guerra e, quando ela terminou, eles voltaram à militância, passando a fazer documentários comunistas.
Estes filmes não eram ruins, mas basicamente o estilo era o mesmo durante a guerra, quando eram militaristas e após, quando se voltaram para o comunismo. Os jovens documentaristas com os quais me juntei queriam mudar essa situação. Antes de nós, os documentários japoneses eram objetivos e neutros -apesar de a narração ser sempre tendenciosa, tanto aos militaristas quanto aos comunistas. Nós, entretanto, pensamos que deveríamos fazer documentários objetivos, que documentassem o objeto, mas também o próprio cineasta.
Folha - Como essa subjetividade transparece na estética de seus documentários?
Oshima - Quando comecei a dirigir filmes de ficção em estúdio, já tinha minhas opiniões sobre documentários, então introduzi algumas de suas técnicas nesses filmes, como por exemplo em "Cidade do Amor e da Esperança (Ai To Kibo No Machi). Era um tipo de "toque documentarista. Em 1980, Jun'ichi Ushiyama, da Nippon Television (NTV), me pediu para fazer um documentário para a TV. Naquela época, documentários na televisão japonesa estavam no primeiro estágio, ninguém entendia de cinema na televisão.
O primeiro movimento desse tipo começou na NHK. Como os diretores não tinham qualquer experiência com a realização de filmes ou documentários, usavam técnicas de rádio, ou seja, fazer entrevistas. Foi assim que nasceram os documentários-entrevistas. Eles eram muito novos na televisão da época e muito diferentes dos chamados "autênticos" documentários japoneses, eram filmes fortes, interessantes. Gente como Susumu Hani aderiu a esse tipo de movimento na NHK, e, ao mesmo tempo, Ushiyama queria fazer uma série de documentários para a NTV e me convidou para dirigi-los.
Ele queria fazer documentários mais pessoais e com diretores de filmes de ficção. Foi isso que deu sabor aos documentários de Ushiyama. Nós tínhamos, porém, duas limitações: orçamento e tempo. Era totalmente diferente dos meus filmes em estúdio e uma experiência nova para mim, especialmente "Soldados Esquecidos" ("Wasurerareta Kogun"). Eu já estava interessado no problema coreano, mas, quando encontrei esses soldados coreanos, fiquei impressionado, foi como destino. Quando fiz esse filme, me dei conta do que é documentário.
Folha - Tem-se a impressão de que o senhor divide a história do Japão em antes e depois da Segunda Guerra Mundial. Critica veementemente tudo que ocorreu no Japão depois dele. Como explica isso?
Oshima - Como um produtor de documentários, Ushiyama tinha duas tendências. Uma eram os filmes etnográficos, os quais ele adora e costumava rodar no Pacífico Sul ou na Amazônia. Outra, era sua preferência pelos problemas de guerra. Eu mesmo aprecio esse tema e a história japonesa moderna em geral. Então decidi que os temas principais dos meus documentários deveriam ser a Segunda Guerra, a guerra japonesa contra a Ásia e o período pós-guerra.
Folha - O senhor já teve problemas em relação à censura com seus documentários?
Oshima - O momento mais importante da minha vida como documentarista foi no início da guerra do Vietnã. Estava na Coréia, na minha primeira viagem para o exterior, filmando "Monumento à Juventude" (Seishun No Hi), com Ushiyama, e nós vimos monges vietnamitas despejando gasolina em suas roupas e colocando fogo em si próprios. Ficamos muito chocados. Então, Ushiyama e eu concordamos que deveríamos ir ao Vietnã no ano seguinte para filmar documentários sobre a guerra (do Vietnã), até o fim, até que os americanos saíssem. Aí, Ushiyama foi para lá e fez o filme "Diário de Guerra dos Fuzileiros Navais Vietnamitas" (Vietnam Kaihei Daitai Senki).
Incluía a cena de uma criança segurando a cabeça cortada de um soldado vietcong. Foi mostrado na televisão e o governo proibiu o filme inteiro.

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