São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As viúvas da inflação

Toda mudança para melhor deixa algo para trás, um fracasso

GUSTAVO FRANCO

O noticiário recente sobre o Plano Real me traz à lembrança uma historinha do inesquecível Henfil, fonte inesgotável de sabedoria política que deveria ser revisitada com mais frequência.
O Bode Francisco Orellana, um revolucionário assumido e desavergonhado, como sói ocorrer naqueles tempos, apareceu certa vez nos quadrinhos bastante agressivo e saiu alardeando: "Eu sou é macho, hoje estou com a cachorra e... (pausa grave)... vou esculhambar o governo". A seu lado, em vez de se apavorar com a temerária ameaça, a Graúna, tranquila, ergue os olhos e dispara: "Chico, se tu é macho mesmo, quero ver é falar bem". E o Bode, que tinha juízo, ficou foi bem quietinho.
As patrulhas não são mais as mesmas, é claro, mas prevalece, nas classes observadoras da política econômica, a sensação de que elogiar o governo é como desmunhecar. Significa atrair para si suspeitas de peleguismo ou pior, ingenuidade, algo indesculpável em analistas experientes, que já viram tantos planos econômicos fracassarem.
Sempre é mais prudente olhar as coisas pelo lado negativo: com a contrição dos sábios diante dos graves desafios nacionais, alertar contra os perigos que rondam a estabilização. A hipocrisia se constrói a partir do medo de errar.
Ocorrendo a desgraça, a profecia se confirma, o cidadão cumpriu seu dever em avisar, mesmo enfrentando o desprezo das autoridades. Se não ocorrer, o próprio profeta baterá no peito com força: "Errei sim e ainda bem". "O governo corrigiu a tempo o rumo das coisas (graças aos alertas desses brasileiros exemplares, é claro) e evitou a desgraça." O pessimista se apresenta como patriota.
Recentemente, num extraordinário artigo ("Por que somos um Narciso às avessas", "Exame", 30/8), Jorge Caldeira, o biógrafo de Mauá, observa que, desde 1831, quando o deputado Paulo Araújo declarou solene que o país estava à beira do abismo, vivemos a repetição desse mote, ao tempo que envoltos em um avassalador sentimento de culpa pelas coisas que dão certo. Assume-se, conforme Caldeira, que o sucesso (que, em si, nunca parece despertar grande entusiasmo entre os contemporâneos, pois é sempre relativo e tem vítimas) cria injustiças, cuja reparação se torna a razão de ser do que ele chamou de "a indústria do fracasso".
Toda mudança para melhor deixa algo para trás, um fracasso, e, por isso mesmo, o progresso tem de pagar o preço de carregar essa ferida, cuidar dela e, se depender dos feridos, nunca cicatrizá-la (daí o fracasso virar profissão).
Ao governo cabe e sempre coube, evidentemente, toda a culpa por todos os fracassos nacionais, por mais individuais que pareçam. Mesmo quando não tem nada com o assunto, sempre se diz que o governo devia ter fiscalizado e, portanto, devia indenizar os prejudicados. Desde o começo, este país não admite perdedores, pois aqui as omeletes parecem ser de vento e os almoços todos gratuitos. Aqui a hiperinflação termina e todos que sempre se locupletaram para viver dela acham que a culpa é do governo, por estarem sofrendo, e que a vida era melhor com a hiper.
A moeda forte, como todos já percebemos, deixa as coisas mais claras. Estabelece o primado do interesse coletivo (e disperso) sobre o individual que, por natureza, é organizado em entidades e profissional na sua própria defesa. As maiorias beneficiadas pela estabilização permanecem mudas, decifradas apenas em pesquisas de opinião acessíveis a muito poucos. As minorias organizadas querem a inflação de volta. É visível a nostalgia de alguns de seus líderes, hoje expressando dúvidas se não eram mais felizes naquele tempo. É claro que eram, pois a inflação lhes fazia bem.
As queixas contra câmbio e juros têm sido muito comuns desde que o Real foi lançado. Queixas normais em qualquer plano de estabilização, mas certamente andam um tanto infladas. A julgar pelo barulho da gritaria, a impressão é a de que, desde o começo, fizemos tudo errado e que o Real não poderia estar indo senão para o brejo, o que não é o caso.
Existem e sempre existirão, no domínio da dupla câmbio-juros, visões diferentes sobre dosagem. Exceto pelos suspeitos de sempre, não se vê ninguém sério a defender juros reais negativos e maxidesvalorização. É sabido que o câmbio caiu porque o país tem um superávit estrutural nas suas contas externas e que, com crise do México e tudo, vai terminar 1995 com as reservas maiores em US$ 10 bilhões. É porque os fundamentos do mercado mudaram drasticamente de uns anos para cá que é tolice falar em defasagem cambial. Defasagem com relação a que, se o passado não serve mais como referência?
Quanto aos juros e compulsórios, subiram porque no primeiro semestre de 1995, relativamente ao primeiro de 1994, os gastos do governo cresceram muito. A receita tributária, felizmente, também cresceu na mesma proporção, de modo que não tivemos déficit, mas não há como negar que a política fiscal ficou bem mais expansionista.
Na esfera federal ocorreu algo semelhante ao que se passou com os Estados: aumentos nas despesas de custeio dos quais o governador atual não tem nenhuma culpa. De um modo ou de outro, a fim de evitar superaquecimento e inflação, a política monetária ficou mais restritiva. O juro subiu, o nível de atividade ficou onde estava, as contas externas em ordem e os preços cederam. Exatamente como está nos livros-texto.
Curioso é imaginar que poderia ter sido diferente. Durante muitos anos, e com grande custo social, experimentamos intensamente caminhos alternativos. Muitas carreiras ilustres foram construídas em torno da noção de que o Brasil é diferente e que, nos trópicos, a teoria convencional não funciona. E lá fomos nós, da medicina alternativa para a esotérica, combatendo a inflação com florais e homeopatia, e chegando finalmente à hiperinflação nos achando muito espertos por desafiar o establishment.
O Brasil está mudando com extraordinária velocidade e enfrentando as mesmas dores da transformação descritas por Jorge Caldeira. A diferença é que agora tudo se passa de forma mais veloz. Contamos em anos o que contávamos em décadas no século passado.
A abertura, a globalização, os efeitos da estabilização, bem como os novos papéis do governo, tudo isso mudou em bases duradouras o perfil do mercado consumidor doméstico, a química da nossa competitividade, e lançou bases inteiramente novas para o crescimento.
O novo ambiente é complexo e é preciso entender o que se passa. A discussão semântica sobre se estamos ou não em recessão, a partir dos dados do emprego formal na indústria de São Paulo, passa ao largo de outra, muito mais importante, sobre as mudanças estruturais no perfil e na distribuição setorial e regional do emprego mercê das novas condições acima aludidas.
Como em tantos outros países, o desemprego, especialmente quando ocorre durante fases de crescimento, reflete mudanças de natureza estrutural -novas tecnologias, produtos e indústrias, terciarização etc. -com profundas implicações para o mercado de trabalho.
Como é bem sabido, o nosso arcabouço regulatório nesse domínio resulta em uma poluição de encargos e regulamentos que engessam o mercado de trabalho de tal sorte que o bilhete azul se torna a única forma de se resolver um problema trabalhista. O desemprego que estamos vivendo não se resolve, senão em parte, por políticas de demanda, mas através de mecanismos que facilitem os ajustes estruturais na economia.
Sem embargo, as ações mais importantes para atacar o problema devem ter lugar no próprio mercado de trabalho através da flexibilização de nossa legislação trabalhista. Nessa linha, a redução dos encargos que incidem sobre a mão-de-obra seria extremamente pertinente. Por que não, por exemplo, suspender a cobrança de todos, ou quase todos, os encargos trabalhistas durante seis meses? O que aconteceria?
Além de uma provável melhoria nos níveis de emprego e salário (e de eventuais dificuldades no Sebrae para saldar seus compromissos), talvez fique claro que a questão do emprego passa pela desregulamentação no mercado de trabalho e não propriamente pela menor parcimônia na emissão de moeda.

Texto Anterior: BURACOS; ESTRATÉGIA; DECISÃO; ESQUEÇAM TUDO
Próximo Texto: Partido Progressista Brasileiro
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.