São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Inveja do Braúlio

MÁRIO VITOR SANTOS

O bráulio acaba sendo o culpado de muitos dos recalques e das piores infelicidades e repressões deste mundo
inveja do Bráulio
Há algo de estranho nessa polêmica envolvendo a nova campanha anti-Aids do Ministério da Saúde. Nos filmes da campanha, o personagem dialoga com o próprio instrumento, ou "ferramenta", como preferia Oswald de Andrade, de maneira mais crua.
O recurso é engraçado e segue um costume de se humanizar os órgãos sexuais, dando-lhes nomes curiosos, como se eles tivessem personalidade própria, alheia e até avessa à do proprietário, por assim dizer. Nas peças da campanha, o pênis era íntima e carinhosamente tratado de "Bráulio". Era. Porque o ministério, depois de vários protestos, intimidou-se e recuou.
Não dá para entender por que vários Braúlios sentiram-se tão ofendidos com o fato de as peças publicitárias usarem seu nome. Em tese, não existe nada de especialmente humilhante na associação, apesar de o pênis ou o Bráulio ser ali classificado de "grosso, metido e safado, o que muitas vezes é verdade.
Ao contrário, seria de se esperar que houvesse até um certo orgulho masculino em emprestar o nome ao falo. A associação com o pênis tem todas as valorizadas conotações de potência, virilidade, fertilização.
É provável que o batismo do pênis com um nome curioso não tenha sido o fator que deflagrou a reação. Afronta maior aos preconceitos parece ter vindo do fato de o pênis ser tratado assim com tanta camaradagem em público.
Existe uma espécie de código não-escrito estabelecendo que as referências nos meios de comunicação aos órgãos genitais obedeçam mais à distância da linguagem dos compêndios médicos que aos atritos de um palavreado envolvente.
Freud dizia que a relação entre a criança e seus pais não é de forma alguma destituída de elementos de excitação sexual. A criança toma um dos pais como objeto de seus desejos eróticos. O desejo sexual dos meninos pelas mães deixa raízes profundas na personalidade masculina.
O complexo criado nessa situação resulta em repressão, que exerce grandes e duradouros efeitos inconscientes, com grande influência sobre muitos campos da vida mental. Pode derivar até em negação da sexualidade e de tudo que se refira a ela.
Em lugar de encará-lo (ops!) como instrumento de obtenção de prazer, o indivíduo pode simplesmente passar a ver no pênis um veículo de frustração, culpa e dor. O desavisado pênis, o pinto, a benga, o membro, o órgão, a vara, o peru, o pau, o bimbo, o cacete, a piroca, o mangamelo, o pé-de-mesa, o caralho, o campeão, a pica, a rola, o tripé, o piu-piu, o zezinho, o ferro, a manjuba, o fumo, a jeba, o badalo, o pingolim e, agora, o bráulio, acaba sendo o culpado de muitos dos recalques e das piores infelicidades e repressões deste mundo. O que tem tudo a ver com a onda neoconservadora que prospera em todos os cantos.
Mario Vitor Santos é editor de Revistas da Folha
Ilustração: "Enforcado (tubos de néon sobre pedestal metálico), de Bruce Nauman

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