São Paulo, terça-feira, 26 de setembro de 1995
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Intelectuais perdem para a bolha maldita

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Como pensar sem esperança? É o que me ocorre ao ler o diálogo entre os intelectuais Regis Debray e Jean Ziegler, em livrinho editado pela Paz e Terra. Precioso.
Debray -rapaziada do pós-tudo- foi "o Jovem!". Em 69, supremo luxo, largou a família rica de Paris e Sorbonne e foi lutar ao lado de Che Guevara no mato da América Latina. O máximo, um brilho da minha geração. Tudo que eu queria era ser ele. Fino e macho, um René Descartes com metralhadora.
Quando criticavam a luta armada, eu dizia: "Tu é o Debray?". "Não..." "Então, cala a boca!" Foi em cana, voltou para a França, virou filósofo: a "Crítica da Razão Política".
O outro, Jean Ziegler, é suíço, também fascinado pelo "Terceiro Mundo" (oh, nome saudoso...), esteve no Brasil, andou em candomblés. Dá aulas de alto marxismo em Genebra e ficou famoso com o livro-denúncia contra o paraíso fiscal de seu país: "A Suíça Lava Mais Branco".
Logo, não são dois lero-leros, são o máximo do "intelo" europeu, ambos com prática concreta; matam as cobras e mostram os paus.
O diálogo dos dois é maravilhoso. Clareia os dois tipos pensantes atuais e seu estado mental, nos anos 90. Um é cético, o outro esperançoso. Um perdeu a fé (Debray) o outro não larga o osso (Ziegler).
"Para que servimos? Para nada! "-dizem eles, com dois sabores de amargura; um com gosto de mártir, outro com riso de cínico.
E em volta de seu diálogo estende-se o pânico de um mundo vazio, que nem sabe que eles existem, que nem sabe que eles sofrem em busca de um sentido.
Filhos de Zola
O intelectual perdeu o rumo, no sentido originário da palavra "intelectual": sujeito que tenta influir no mundo através de idéias.
Este tipo de pensador militante surgiu no fim do século 19, quando Émile Zola escreveu o célebre artigo de jornal "Eu Acuso", denunciando o anti-semitismo injusto contra o capitão Dreyfus.
Nasceu aí uma espécie de filho do cientista com o político. O século 20 foi o paraíso do "intelectual", mas agora a barra parece estar pesando.
Este intelectual (marxista, social democrata etc.) planejava um futuro, dizia um rumo. E tinha provas para sua fé no futuro, tinha o socialismo rolando, tinha opções para a barbárie, tinha um lugar social.
Lenine era um intelectual. Fidel, Mao, todos eram. Até Stalin escreveu um tratado sobre o materialismo. O intelectual era nosso guia, nossa esperança de cretinos, e agora o tratam como se não tivesse existido.
Ainda há empregos para técnicos informatizados, mas, para aquele que erguia a fronte em luta pela justiça, pálido, com dedo em riste, nada. O intelectual não era ainda esta curiosidade pública que virou, se esgueirando pelos cantos, apontado pelos burros.
Na América Latina, então, era um sucesso. Aqui, onde o Estado nasceu forte, numa sociedade fraca, o intelectual era uma ponte (crítica ou não) entre o poder e o povo. Era uma espécie de sociedade civil substituta.
Tivemos gente como Ruy Barbosa, Domingos Sarmiento na Argentina, Jose Marti em Cuba, que criaram estruturas educacionais, exércitos, legislação, identidade de países. Eles nos tranquilizavam: "O presente é ruim, mas é um mero ritual de passagem para um futuro harmônico. E nosso sofrimento tinha paz.
Cai a URSS, cai a idéia de futuro justo e o intelectual se vê de mãos abanando. Que será de nós? (Vejam que eu, o mais parvo, me incluo.)
Hoje, temos dois tipos principais: os esperançosos e os desbundados. Xingam-se aos berros de "reacionários" ou de "ingênuos". PT x PSDB. Feio de ver.
Eu entendo; é terrível não ter uma pátria de certezas, ser uma igreja sem pedra.
Acho que é por isso que os comunas lutaram pela esperança até o fim, fingiram não ver a Hungria, Praga, a Gangue dos Quatro. Pensavam: "É terrível, mas são contingências da dialética; o futuro é bom".
Salsichas gigantes
Outra descoberta trágica foi saber que há duas histórias se movendo: a história técnica (ninguém vai largar o trator pelo arado, o avião pelo balão), na política o negócio é outro.
Podemos lindamente voltar a fascismos pavorosos, crueldades sem nome, religiões primitivas. Vejam o mundo fundamentalista, tribalista que se desenha. Quanto mais planetarizado, mas balcânico.
Não estamos vacinados contra o fanatismo. Os homens morrem e renascem sem memória. Só há memória na técnica. A ética é lenta e reversível.
Como diz o Debray, "há uma falsa globalização, sem trocas nem reciprocidade. O espaço 'planetário' é falso. O espaço é norte-americano. O que está sendo globalizado é o modo de pensar norte-americano".
E, pior, isso não está sendo "planejado" em segredo pela CIA ou pelo Pentágono, como achávamos. Isso está sendo feito pelas Coisas, pelas Mercadorias e sua razão opaca. A invasão das salsichas gigantes, a coisa, a "bolha maldita".
A razão mercantil não tem coração, nem sabe que existe. É feito aquele "Alien" do filme, monstro devorador sem rumo. É um imperialismo das coisas. Assim como a informatização está criando um desemprego crescente, as mercadorias estão aposentando o pensamento, pois elas não se dobram mais a ele (dobraram-se algum dia?).
O pensamento passou a servir as coisas, a atender ao desejo de sua reprodução técnica. Pode haver uma ensinança de humildade aí?
Sim; o mercado atenua o ideal ingênuo de totalidade. O "chu-chu" pode ser mais importante que a dialética. Só que descobrir isso não resolve. A "Bolha" continua comendo tudo.
Não há quem atacar. As coisas não são inimigos declarados. Elas agem pela lógica mercantil em vez da lógica filosófica. A razão virou um luxo francês como o "ris-de-veau". O capitalismo não quer nem saber dos adjetivos novos que lhe emprestaram.
E o intelectual sofre. Se os intelectuais forem pagos para produzir bens simbólicos, hoje isso é feito pela mídia e pelos evangélicos.
Se toda sociedade precisa de feiticeiros da esperança, é visível que o sucesso de Edir Macedo é maior que o de Wittgenstein. Se Giannotti ataca ACM como antiético, ACM decreta-o como desnecessário. O intelectual sofre e o mundo nem sabe disso.
E aí Ziegler nos anuncia um terrível destino. Ele diz que o mais sinistro é que até a antiga ordem imperialista do mundo desapareceu. Essa ordem estava fundada na exploração da mão-de-obra e das matérias primas, na busca das riquezas naturais da periferia pelas nações do Centro. Até isso acabou.
A revolução eletrônica, a substituição de matérias-primas por sintéticas, a racionalização da produção estão fazendo que eles até percam qualquer interesse em nós, do Terceiro Mundo.
Estamos na carência máxima: não temos mais nem a esperança louca dos explorados. Seremos esquecidos. Um "apartheid" mundial está sendo construído. O imperialismo era exploração; o globalismo é exclusão.
Debray e Ziegler declaram que o intelectual não serve mais para nada. Nosso caso é mais estranho: o Brasil é tão original que até temos um intelectual no poder.

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