São Paulo, terça-feira, 26 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Manicômio, asilo e hospital

VALENTIM GENTIL FILHO

"De médico e de louco cada um tem um pouco." "De médico..." deve ter inspirado a composição das comissões e fóruns para a reforma psiquiátrica no país, onde a participação dos psiquiatras foi, e é, uma fração da dos leigos e administradores de saúde. Deve justificar, também, a obrigatoriedade de que atos médicos sejam referendados por escrito pelos membros não-médicos das equipes de saúde mental.
"De louco..." é comprovada pelo mais sofisticado estudo epidemiológico americano ("National Comorbidity Survey", Arch. Gen. Psychiatry, 1994). Entrevistas domiciliares em 34 Estados revelam que 30% dos americanos adultos sofreram pelo menos um transtorno psiquiátrico no ano anterior ao exame.
Os diagnósticos mais frequentes foram de pânico, fobias e obsessões (17,2%), abuso e dependência de álcool ou drogas (11,3%) e os transtornos depressivos (11,3%). Esquizofrenia ocorreu em 0,5%, enquanto outro 1,3% da amostra teve outras psicoses. Considerando toda a vida, 48% da amostra sofreu um ou mais desses transtornos em algum momento de suas vidas.
Dados preliminares sugerem que nossa realidade seja semelhante. Por isso, qualquer lei que afete os portadores de transtornos mentais interessa diretamente a 50% da população.
Está entrando em regime de votação na Assembléia Legislativa deste Estado o projeto de lei 366 de 1992, de autoria do deputado Roberto Gouveia e outros, que "dispõe sobre a promoção da saúde e da reintegração social das pessoas portadoras de sofrimento mental; implantação de Modelo de Saúde Mental alternativo, com a substituição dos hospitais psiquiátricos e sua extinção progressiva; regulamenta a internação involuntária e dá outras providências".
Assim como seus congêneres de outros Estados e como seu modelo, o projeto Paulo Delgado -atualmente no Senado Federal-, o projeto Gouveia inspira-se na lei 180 ("Lei Basaglia"), de 1978. Fechando os hospitais psiquiátricos italianos antes que os equipamentos alternativos de saúde mental fossem implantados, a Lei Basaglia causou, em apenas cinco anos, aumentos significativos nas internações em manicômios judiciários (+58%), mortes devidas a doenças mentais (+44%) e suicídios de doentes mentais (+19%) (G. Palermo, J. Royal Soc. Med., 1991). Como disse uma conhecida socióloga inglesa, "leis não curam pacientes".
Devido a experiências desastrosas como essa, a Organização Mundial da Saúde recomenda que sejam mantidas as opções de residência hospitalar para pacientes "que necessitem cuidados intensivos de alta qualidade e sejam incapazes de levar vida mais independente" e sugere que não se fechem os hospitais enquanto as alternativas não estiverem implantadas na comunidade.
O projeto Gouveia proíbe "a construção e ampliação de hospitais psiquiátricos e similares, públicos ou privados..." e desautoriza o funcionamento de "todos os hospitais psiquiátricos ou similares existentes, após cinco anos da data de promulgação desta lei".
É improvável que o governo disponha dos recursos necessários para criar, em cinco anos, toda a rede alternativa para abrigar os milhares de doentes crônicos que ainda estão internados neste Estado. Nem de ambulatórios capacitados a prescrever lítio, que reduz significativamente o risco de internações, o país dispõe! Fechar instituições é fácil, abandonar seus pacientes à própria sorte seria um crime. Isso, porém, já ocorreu em diversos outros países, notadamente na Itália após a lei Basaglia, e pode ocorrer aqui.
Além disso, essa lei não garante que maus-tratos, abordagens ineficazes e os demais vícios das instituições totais não ocorrerão nos equipamentos alternativos de saúde (hospitais, lares abrigados, centros comunitários etc.), pois a má prática assistencial geralmente é consequência da má administração e da falta de recursos materiais e humanos adequados.
O pior, a longo prazo, é que o projeto comete um erro conceitual muito grave ao confundir grandes instituições fechadas, asilares (geralmente desprovidas de recursos, mal administradas e, por isso mesmo, oferecendo maus serviços), os manicômios (com equipamentos de saúde que concentram unidades de internação, ambulatórios) e recursos médico-científicos sofisticados, os hospitais psiquiátricos.
Um moderno hospital psiquiátrico pode ter enfermarias especiais para idosos, crianças e adolescentes, portadores de transtornos alimentares, dependentes de álcool ou drogas, deprimidos graves e pessoas incapacitadas por obsessões, compulsões ou fobias, pacientes agitados ou confusos devido a doenças orgânicas, além dos que estão temporariamente em estados psicóticos agudos. Assim são os melhores serviços norte-americanos e europeus.
Neles são testadas hipóteses avançadas sobre as causas, os mecanismos e os tratamentos não apenas das psicoses mais graves, mas de todos os transtornos mentais que afetam metade da população. Eles facilitam o intercâmbio e os esforços conjuntos de diferentes equipes multidisciplinares e o teste de alternativas terapêuticas. Isso dificilmente ocorreria nas pequenas enfermarias de psiquiatria dos hospitais gerais (vide Sonnenreich e Silva Filho, J. Bras. Psiquiatria, 1995).
Defender um hospital moderno não significa adotar o modelo "hospitalocêntrico" em detrimento das alternativas comunitárias e de reinserção social. Sem dúvida, a função de asilo, abrigo, acolhida e proteção a pessoas incapacitadas por doenças mentais, exercida até agora pelos antigos hospitais psiquiátricos, deve continuar sendo uma obrigação do Estado e pode ser oferecida por outros equipamentos que não o hospital.
Faz tanto tempo que não se investe em hospitais psiquiátricos modernos no Brasil que esse conceito parece ter se perdido. Só assim é possível entender que pretendam proibir investimentos em um equipamento de saúde quase inexistente no país, que tem gerado as principais contribuições e progressos no conhecimento, tratamento e prevenção das doenças mentais.
Pensando nos já afetados e nos que correm grande risco de desenvolver transtornos mentais no futuro (a maioria da população!), nossos parlamentares e governantes poderiam agir melhor se extinguissem os manicômios, garantissem o direito de asilo e proteção aos incapacitados, ampliassem a rede de atendimento extra-hospitalar e incentivassem, também, investimentos em alguns bons hospitais psiquiátricos, públicos e privados.

Texto Anterior: A esquerda na pós-modernidade
Próximo Texto: Fazenda e Planejamento; Picadinho; Círculo vicioso; Desmunhecar; Elizabeth Bishop; Decadência; Defesa dos magros; Belzebu; Bráulios
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.