São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Crítica de passagem

BEATRIZ SARLO

O Escorpião Encalacrado - A Poética da Destruição em Julio Cortázar
Davi Arrigucci Jr.
Prólogo: Antonio Candido
Companhia das Letras, 337 págs.
R$ 26,00

A relação Borges-Cortázar é uma das grandes questões da literatura argentina moderna. Borges foi, de alguma forma, o precursor de Cortázar. Porém, Cortázar não veio para substituí-lo. Borges tornou possível Cortázar, ainda que Cortázar combinasse poéticas (como o surrealismo e o romantismo) que Borges repudiava. O que ambos têm em comum não esconde suas diferenças. Na verdade, diferem mais profundamente do que se assemelham. Estas idéias, que a crítica tem retomado muitas vezes, são vistas de uma perspectiva nova no livro de Davi Arrigucci.
Arrigucci propõe uma solução original para as diferenças entre Borges e Cortázar, dando uma contribuição considerável para o debate estético. O argumento é complexo, porém, ao mesmo tempo, possui a instantânea nitidez de um golpe de vista que capta as coisas no seu movimento. Arrigucci compara dois contos, "O Tema do Traidor e do Herói" de Borges e "Instruções para John Howell" de Cortázar. Poder-se-ia dizer dois contos idênticos e que são, porém, radicalmente diferentes pela relação entre o narrador e o narrado. Com efeito, Borges narra à distância e, ainda que o seu narrador careça do saber totalizante do narrador tradicional, de qualquer forma apresenta os acontecimentos da ficção de fora e, quase, de longe. Cortázar, em contrapartida, narra numa terceira pessoa que potencializa ao máximo a grande invenção de Flaubert: o discurso indireto livre, que apresenta uma voz interna à personagem mediante um "ele" que tem a ressonância de um "eu".
Na verdade, o discurso indireto livre, como trabalho da subjetividade e de sua deriva experiencial, é profundamente alheio à literatura de Borges. E, ao contrário, é completamente afim à perspectiva de Cortázar, que jamais quis separar-se da subjetividade, mesmo que fizesse detonar as formas tradicionais da personagem de ficção. O discurso indireto livre é uma das marcas características do tom cortazariano e é uma das ausências mais deliberadas da literatura de Borges. Isso não tinha sido dito antes, da maneira contundente como o diz Davi Arrigucci.
Daqui poderia surgir -ainda que ele não complete este movimento- uma teoria das diferenças entre Cortázar e Borges, que permitiria pensar de que modo Cortázar se afasta violentamente de Borges pelo caminho em que a literatura costuma exercer suas violências: a mudança das formas que, por sua vez, tem a ver com a diferença na percepção dos sujeitos, a desigual confiança no poder da paixão, do desejo e da sensibilidade. Borges prescinde da proximidade subjetiva e só confia na distância da literatura -daí seu narrador exterior aos fatos narrados. Cortázar encontra na subjetividade -no erotismo, em formas pulsionais do "bebop" e do surrealismo- a única maneira de arrebentar o nó de inadequação e de falsidade que comprime a literatura. Borges, como bom agnóstico, não pensava em termos de inadequação e falsidade. Cortázar, em contrapartida, denuncia sem cessar a falsidade do clichê instalado como obstáculo cotidiano que nos separa de uma verdade que poderia estar -ainda que não inteiramente- em alguma parte.
A inteligência desta anotação crítica não é o único mérito do ensaio de Davi Arrigucci. As consequências que extrai da tese central, que dá título ao livro, desdobra-se no capítulo final onde, a partir de "Rayuela" ("O Jogo da Amarelinha"), caracteriza o modo da ficção cortazariana como "atomização caleidoscópica do relato em partículas recombináveis segundo diferentes direções de leitura". Nesta frase brevíssima de um livro extenso, encontro uma das definições mais precisas da disposição dos materiais literários na escrita de Cortázar. Efetivamente, ali está a fragmentação, que torna possível a colagem, a combinatória, que abre as portas do acaso e impõe o aleatório sobre o causal, e a pluralidade hermenêutica, que é uma das condições básicas de uma literatura que mostra sua qualidade incompleta, sua produção incessante e nunca fixa de sentidos.
Para chegar a esta frase, Arrigucci apresentou uma armação muito complexa de hipóteses que se repetem, se imbricam e se sucedem em espirais e amplificações. Esta armação sustenta a qualidade ensaística de "O Escorpião Encalacrado", que propõe um desenho -uma figura, diria Cortázar- caracterizado pelo entrelaçamento duma mesma linha intensa de argumentação: a saber, que a literatura de Cortázar apresenta os instrumentos de seu próprio questionamento, isto é, que se trata de uma literatura que se critica e se observa a si mesma no processo de escrita. O escorpião morde a sua cauda: o ácido da crítica vanguardista à instituição literária e aos limites da escrita corrói o próprio texto onde se atacam a instituição literária e seus modelos de escrita não reflexiva.
Num percurso que passa pelas vanguardas, e especialmente pelo surrealismo e pelo dadaísmo, o ensaio de Arrigucci chega ao maneirismo, no qual se encontra essa representação em espelho da literatura, esse espelho que reflete outro espelho, essas caixas chinesas da obra dentro da obra, que nos remetem -afirma Arrigucci, e nisto segue Arnold Hauser- à experiência da alienação, à visão de si como se eu fosse outro, ao questionamento de toda realidade pelo seu reflexo. No jogo, na dissolução dos gêneros, na crítica ao estereótipo, nas metáforas que comunicam literatura e jazz, Cortázar busca a superação de um dilema: a literatura fixa sentidos, e assim impede o desdobramento de uma autenticidade de conhecimento que, numa continuação dos românticos e dos surrealistas, tem a ver com a destruição de toda fixidez de sentido. Cortázar, afirma Arrigucci, busca uma expansão do conhecimento pelas vias duma violação dos costumes literários preexistentes, um forçar os limites da literatura, uma liberação da energia trans-racional do saber poético. A empresa literária é, em si mesma, uma busca de verdade, uma deslocação para fora. E isto, acredito, é uma das distâncias mais claras entre Borges e Cortázar: em Borges não há esta pretensão e não há também um ponto para o qual a literatura deva tender para fora de si mesma.
Arrigucci não sublinha esta diferença, porque sua própria empresa crítica me parece mais próxima à de Cortázar que à de Borges. Como escreveu Antonio Candido, em seu prólogo de 1973, Arrigucci se coloca na perspectiva de uma "adesão simpática". Seu ensaio, em muitos aspectos, tem essa qualidade porosa que ele encontra nas ficções de Cortázar: essas pontes, galerias e túneis pelos quais se passa de um mundo a outro, de um tempo a outro. A porosidade do livro de Arrigucci se desdobra magnificamente na liberdade extrema com a qual organiza a leitura dos textos cortazarianos sem se ater à ordem da cronologia. Opera sobre a obra de Cortázar (excluindo "62 - Modelo para Armar", um romance, em minha opinião, mais importante do que se acredita), como se fosse um hipertexto gigantesco, que se percorre, depois de um estalido, nas direções mais diversas. Esta liberdade na organização de seus materiais, esta crítica de passagem entre um relato e outro de diferentes livros ou diferentes épocas distancia o ensaio da aridez acadêmica. Arrigucci, que conhece as precisões da teoria, escreve sobre Cortázar com uma vibração que sempre nos comove na melhor crítica.

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