São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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A loucura em primeira mão

RICHARD THEISEN SIMANKE

Memórias de um Doente dos Nervos
Daniel Paul Schreber
Tradução, introdução, glossário: Marilene Carone
Paz e Terra, 372 págs.
R$ 25,00

Dentre as histórias clínicas publicadas por Freud -que, de ordinário, já não se destacam por sua conformidade com o que hoje seria considerado um tratamento psicanalítico padrão-, a mais insólita talvez seja sua análise do caso de Daniel Paul Schreber. Isto se deve não apenas ao caráter bizarro e à fantástica complexidade do sistema de crenças delirantes que ele alinhava em suas "Memórias", mas também ao fato de que estas constituem praticamente a única fonte de informação sobre o paciente de que dispunha Freud e, assim, o único material clínico sobre o qual efetivamente trabalhou. É claro que nada se passa sem as necessárias justificativas teóricas -às quais retornaremos; mas talvez tenha sido justamente essa peculiaridade de seu ensaio, hoje clássico, que garantiu que as atribulações de um paranóico ilustrado na virada do século despertassem tanto o interesse daqueles que retomaram ou exploraram à sua maneira as teses freudianas, quanto um interesse mais geral, que já extrapolou a esfera psicanalítica.
Embora bastante criativo, o delírio schreberiano não é assim tão insólito dentro do contexto dos quadros de paranóia -ou de outras afecções- que povoam as instituições asilares. O que primeiro depõe a favor de sua singularidade é que muito raramente um caso tão agudo evoluiu de forma a permitir que seu protagonista, dotado de razoáveis recursos intelectuais, expusesse de próprio punho suas construções delirantes. Além disso, a exposição é feita com uma minúcia e objetividade que produzem o interessante contraste entre uma temática ao mesmo tempo mística, médica e escatológica (nos dois sentidos) e uma forma vazada na mais convencional linguagem acadêmica, própria de um jurista alemão de formação puritana e tradicional.
Schreber julga-se vítima de uma conspiração, cujo principal mentor é, inicialmente, o Dr. Flechsig -sob cujos cuidados se encontra ao princípio de seu processo patológico e que já o tratara numa enfermidade anterior- e, depois, Deus em pessoa... O objetivo dessa conspiração é, primeiro, transformá-lo em mulher; em seguida, cometer o que chama de "assassinato de alma", entregando o seu corpo feminino inanimado a toda espécie de sevícias sexuais -perpetradas, talvez, pelo próprio Flechsig, que o abandonaria, em seguida ainda, à corrupção definitiva. Deus é arrastado ao complô pelas maquinações de Flechsig; mais tarde, isso será explicado pelas peculiaridades da entidade divina, bem como da alma de Schreber. Aliás, é para explicar este Deus incauto, tão distante da representação onipotente das religiões tradicionais, que Schreber constrói todo um vasto sistema cosmoteológico, dando dimensões metafísicas ao seu delírio.
É mais ou menos isso: as almas são constituídas por nervos, assim como o próprio Deus, mas este possui um número ilimitado deles e, evidentemente, desembaraçado do entrave corporal. Quando agem sobre o mundo criado, os nervos de Deus denominam-se "raios", com o que se estabelece uma espécie de continuidade entre criador e criatura, que é reforçada por uma peculiar teoria da bem-aventurança, segundo a qual, após a morte, as almas dos homens sofrem um processo de purificação no qual ascendem gradualmente na hierarquia celestial, pela sua fusão com outras almas e perda progressiva da identidade pessoal. Elas formam, assim, os "vestíbulos do céu" ou os "reinos anteriores de Deus", aos quais se seguem os "reinos posteriores de Deus", isto é, a divindade propriamente dita; esta divide-se, ainda, num Deus inferior e num superior, aos quais são atribuídos os nomes persas de Ariman e Ormuz.
Desde os limites do cosmo, para onde se retirou após a tarefa da criação, Deus só se relaciona com homens mortos e suas almas, e é essa radical incompreensão do organismo vivo que o deixa à mercê da perversidade de Flechsig. É postulado que nervos humanos hiperexcitados -como os de Schreber- podem exercer tal atração sobre os raios divinos que estes não mais podem desprender-se.
Essa relação exclusiva de Deus com um único homem põe em risco a própria existência do Universo; Schreber chegou a crer, a certa altura, que o mundo se desvanecera e que os homens que via não passavam de fantasmas induzidos em seus nervos pela ação divina. Ameaçado em sua própria existência, Deus esforça-se para consumar o assassinato de alma de Schreber, perpetrando toda espécie de barbaridades: altera drasticamente suas vísceras, extinguindo e recuperando órgãos vitais, impedindo-o de evacuar etc. Vozes ou "pássaros miraculados" falam-lhe continuamente (na "língua fundamental", um alemão arcaico e eufemístico) procurando denegri-lo e privá-lo da razão. Schreber a tudo resiste, pois sua emasculação, apenas para satisfazer a concupiscência de um homem, é "contrária à ordem do mundo".
Ao fim e ao cabo, uma mutação "conforme a ordem do mundo" é alcançada: transformado em mulher, Schreber será fecundado pelo próprio Deus, dando origem a uma nova raça de homens. Enquanto essa metamorfose -que pode demorar alguns séculos- não se consuma, Schreber entra com uma ação vitoriosa para recuperar seus direitos civis, escreve e publica suas "Memórias de um Doente dos Nervos", visando o avanço da ciência e a instrução das gerações futuras, e dedica algumas horas diárias a cuidados tipicamente femininos com o corpo, levando uma vida praticamente normal durante alguns anos, ao cabo dos quais sofre uma recaída, desta vez definitiva, morrendo internado.
Para Freud, a análise deste texto representou a oportunidade de levar adiante a investigação que culminaria na formulação do conceito de narcisismo e na introdução da categoria das neuroses narcísicas -que antecede diretamente seu futuro conceito de psicose- na nosografia psicanalítica. Partindo da hipótese de que é manifesto na paranóia aquilo que a neurose oculta, ele justifica a atenção exclusiva concedida aos escritos de um homem que jamais conheceu, insinuando, com isso, a possível inadequação da "Verdrãngung" (repressão ou recalque) para a explicação destes quadros, o que culminaria, no terço final de sua obra, na pesquisa em torno do mecanismo metapsicológico específico da psicose.
Além disso, o sucesso de Schreber em reconstruir seu mundo interno e externo, aniquilados pelo processo defensivo da paranóia, confirma, para Freud, uma concepção não-deficitária do delírio, na qual este surge como uma tentativa de cura, e não como um efeito do dano patológico primário, revertendo a catástrofe cósmica na qual este resultara. Esta peculiaridade do discurso schreberiano será encarecida por Lacan, que, não se pode negar, foi um dos responsáveis pela divulgação que o livro veio a atingir. Desde os primórdios psiquiátricos de sua carreira, ele se opusera às concepções deficitárias da paranóia e da psicose em geral, propondo uma série de hipóteses alternativas que progressivamente se aproximaram das concepções psicanalíticas.
Anunciada desde o início do "Seminário", a análise do livro de Schreber -que ocupou o terceiro ano do mesmo- representou uma etapa decisiva na elaboração e generalização de sua teoria do significante, fulcro de todo o empreendimento lacaniano: com efeito, um discurso autônomo, que se sustenta somente a partir das próprias articulações, e no qual a ausência absoluta de metáforas desloca a atenção da produção de sentido para os aspectos formais da linguagem, pareceu a Lacan revelar a essência do fenômeno linguístico, que ele procurava fundamentar em sua teoria. A condensação do "Seminário 30" no artigo "Questão Preliminar a todo Tratamento Possível da Psicose" terminou por consagrar as memórias de Schreber como um clássico da literatura psicanalítica.
É este clássico que volta a se tornar disponível, com a oportuna reedição, pela Editora Paz e Terra, da tradução de Marilene Carone, feita com o mesmo talento e responsabilidade que marcaram suas iniciativas de tradução de Freud, e cujo exemplo foi, infelizmente, pouco seguido. E, como assinala a tradutora em seu ensaio introdutório -que, aliás, informou em boa medida esta breve resenha- talvez o grande motor do interesse atual do livro se deva ao fato de que cada leitor contemporâneo se encontre, para formular sua interpretação, em pé de igualdade com os grandes teóricos que dele se ocuparam anteriormente. Um relato da loucura em primeira mão será sempre uma abertura e um convite para o exercício do seu conhecimento.

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