São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Libertinagem e despotismo

FRANKLIN DE MATOS

Filosofia na Alcova
Marquês de Sade Tradução: anônima
Apresentação: Eliane Robert Moraes Ágalma
232 págs.
R$ 22,00

A cena se passa num "boudoir" -num "toucador", em português. O "boudoir" é o lugar para onde a gente pode retirar-se a fim de "bouder" -demonstrar descontentamento, amuar-se; é ainda o lugar onde as mulheres se penteiam, se pintam ou retocam a maquiagem. Quer dizer: ao mesmo tempo onde se deixam cair as máscaras e onde são melhor ajustadas (o que reforça a idéia de teatro). Mais decisivo, porém, é aquilo que observou Yvon Belaval: "Situado entre o salão, onde reina a conversação, e o quarto, onde reina o amor, o 'boudoir' simboliza o lugar de união da filosofia e do erótico".
Esta aliança entre logos e eros foi celebrada num dos maiores clássicos do Marquês de Sade e do século 18, "A Filosofia na Alcova" (como se vê, esta tradução, há muito consagrada em português, deixa escapar a idéia acima). No subtítulo da obra podemos ler: "Os Preceptores Imorais. Diálogos destinados à educação das mocinhas". Embora o livro hesite entre o diálogo, a peça de teatro e o panfleto revolucionário, Sade insiste, como se vê, na idéia de educação e parece decidido a integrar o texto num gênero que tanta importância teve na Ilustração.
Neste "boudoir" -no qual, aliás, bem à maneira de Sade, "a gente degolaria um boi que não se ouviriam seus mugidos"- juntam-se três rematados libertinos: a voluptuosa e devassa Madame de Saint-Ange, seu irmão, com o qual mantém relações incestuosas, o não menos devasso Cavalheiro de Mirvel, e o cínico Dolmancé, sodomita por princípio e convicção, dotado de várias habilidades, mas, sobretudo, de "espírito filosófico". Aqui, o trio depravado inculcará na linda cabecinha de uma menina de 15 anos, a ardente Eugênia, todos os princípios da mais desenfreada libertinagem, juntando, como se pode imaginar, a prática à teoria.
"Coloquemos, por favor, um pouco de ordem nessas orgias, é preciso ordem mesmo no seio do delírio e da infâmia", diz a Saint-Ange a seus parceiros. Eis aqui outra idéia muito apreciada pelo Marquês: as lições devem ser dadas gradativamente e, para garantir o método, lá estão Dolmancé e Madame de Saint-Ange. A Dolmancé cabem dois papéis fundamentais: ele imagina as posições do grupo -é o diretor de cena, o pintor dos quadros- e, além disso, praticamente monopoliza a palavra filosófica. Deve-se lembrar, porém, que a Saint-Ange é proprietária do "boudoir", mas -principalmente- artífice do projeto. Acrescente-se a isso que, antes de satisfazer sua paixão predileta, o experiente Dolmancé vê-se com frequência a ponto de perder a cabeça diante dos encantos de Eugênia -e, então, é Madame quem o impede de queimar etapas e, assim, comprometer a ordem da libertinagem.
No "Terceiro Diálogo", a progressão dessa ordem aparece de modo exemplar, tanto no plano do amor quanto da filosofia. Após a exposição do argumento e apresentação dos protagonistas, passamos à ação propriamente dita: Eugênia e a Saint-Ange ganham o toucador e são surpreendidas pela presença de Dolmancé, que chegara antes da hora prevista; a moça enrubesce, protesta, se acanha; os dois libertinos discorrem brevemente contra o pudor e a decência, Eugênia se rende e, de imediato, seus preceptores se põem a beijá-la com lascívia. Dos beijos voluptuosos passaremos às lições de masturbação, com todas as suas variações, depois à felatio e, afinal, à sodomização, que é o ponto culminante deste ato. Paralelamente, assistiremos à progressiva demolição realizada por meio das dissertações filosóficas, que investem contra os obstáculos ao pleno exercício da libertinagam. Tais obstáculos são as virtudes exaltadas pela moral vigente: Sade começa com o pudor, passa à piedade, à castidade, à caridade, à beneficência etc. O resultado deste processo levará às páginas dedicadas ao elogio da crueldade, nas quais o leitor é transportado para o coração do livro ou, se quisermos, para a sua moral.
Segundo "A Filosofia na Alcova", a natureza nos criou para "o estado primitivo de guerra e destruição perpétuas". É por isso que o espetáculo da dor alheia desperta mais prontamente nossa volúpia e que "não há homem que não queira ser déspota quando fode". Numa palavra, a crueldade não é um vício, mas "a energia do homem que a civilização ainda não corrompeu". A fim de ilustrar esta tese, Sade reserva para o desenlace a aparição de uma figura essencial a seu sistema: a vítima. Com efeito, os libertinos se apoderam de Madame Mistival, mãe de Eugênia, e submetem a pobre beata a toda sorte de sevícias, para volúpia e edificação da mocinha que, dessa maneira, chega à etapa suprema de sua instrução.
A "moral" da crueldade aqui sustentada tem em vista um duplo objetivo, que, aliás, aparece de modo transparente no famoso panfleto que os libertinos se põem a ler ("Franceses, ainda um esforço se quereis ser republicanos"). De um lado, contesta qualquer moral -cristã ou deísta- cujo fundamento é a transcendência divina e, para tanto, retoma os mais contundentes argumentos forjados pela filosofia materialista do século. Embora não se possa de modo algum subestimar este primeiro objetivo, o alvo preferido de Sade em "A Filosofia na Alcova" é certamente outro.
Ao final do quinto diálogo Dolmancé diz à sua discípula: "Procuremos resumir, para sua educação, o único conselho que se pode tirar de tudo o que acaba de ser dito: jamais escute seu coração, minha criança. É o mais falso guia que recebemos da natureza, feche-o cuidadosamente aos falaciosos acentos do infortúnio". Aqui, Sade investe contra uma das maiores alternativas que a Ilustração propõe à moral cristã, ou seja, contra a chamada moral do sentimento, da qual foram ilustres representantes, cada um à sua maneira, Voltaire e Rousseau (que é autor do mais célebre tratado de educação escrito no século 18, onde a piedade exerce um papel absolutamente fundamental). Esta moral afirma que os sentimentos do bem e do mal são inerentes à nossa natureza e que, por consequência, amamos desinteressadamente nosso semelhante. A este otimismo, fundado na idéia de bondade da natureza humana, Sade contrapõe uma antropologia pessimista que, para alguns, aproxima seus escritos -paradoxalmente- da tradição cristã que combatem. Segundo esta perspectiva, aliás, a originalidade do Marquês consistiria em jogar com os dois lados, com os filósofos e os devotos, usando indiferentemente uns e outros, a fim de lançar uns contra os outros (1).
Esse duplo aspecto da militância sadiana fica patente nas últimas linhas de "A Filosofia na Alcova". Encerrada a instrução de Eugênia, Dolmancé propõe aos seus comparsas que se ponham à mesa, que se fartem e, em seguida, descansem. Jamais como e durmo tão bem, exclama o libertino, quanto depois de praticar ações que os tolos consideram criminosas. Em resumo: nada há a temer, pois Deus não existe e a consciência tampouco.
A edição brasileira traz uma boa apresentação de Eliane Robert Moraes, que faz uma breve história da recepção dos escritos de Sade. Quanto à tradução, que a organizadora encontrou num sebo, pode ter interesse para o especialista, mas não serve para o leitor comum. É muito ruim, com todos os defeitos que se possa imaginar.

NOTA
1. Ver Jacques Domenech, "L'Ethique des Lumières", Vrin, 1989

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