São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

É preciso ignorar o teatro

SÁBATO MAGALDI

Linguagem e Vida
Antonin Artaud
Organização: J. Guinsburg, Sílvia Fernandes Telasi e António Mercado Neto
Tradução: J. Guinsburg, Sílvia Fernandes, Regina C. Rocha e Maria Lúcia Pereira
Perspectiva, 290 págs.
R$ 32,00

A publicação de "Linguagem e Vida" vem enriquecer a bibliografia brasileira de Antonin Artaud, reduzida até agora a apenas dois volumes, surgidos na década passada: "Escritos de Antonin Artaud" (seleção e notas de Cláudio Willer, L&PM, Porto Alegre, 1983) e "O Teatro e Seu Duplo" (tradução de Teixeira Coelho, Max Limonad, São Paulo, 1984). O novo livro, privilegiando a estética desse nome fundamental do pensamento moderno, espraia-se em capítulos que reúnem obras básicas no teatro, no cinema, na pintura, na poesia e na vida.
A intenção dos organizadores foi a de oferecer uma coletânea das "Obras Completas", distribuídas em 22 volumes da Gallimard, excetuado o essencial "O Teatro e Seu Duplo". Ninguém duvida que uma seleção mais abrangente permitiria o aprofundamento da múltipla e radical personalidade de Artaud (1896-1948), embora os limites impostos ao livro não tivessem prejudicado a inteireza de seu raciocínio. Mesmo no campo cênico, a inclusão de artigos, manifestos, projetos e correspondência elucida muito do conteúdo de "O Teatro e seu Duplo". A meditação artaudiana move-se da arte para a vida, que acabam por confundir-se.
Já o primeiro texto -"A Evolução do Cenário"- sugere intermináveis debates. Datado de 1924, antecipa incontáveis questões contemporâneas, que permanecem abertas. Algumas afirmações de Artaud soariam contraditórias, se não estivesse a uni-las um fio invisível, descartando permanentemente o acessório. A frase inicial, "é preciso ignorar a 'mise en scène', o teatro", se completa com a assertiva segundo a qual "todos os grandes dramaturgos, os dramaturgos-modelo, pensaram fora do teatro". Poder-se-ia concluir que o teatro se contém no texto, porém o autor esclarece que Racine, Corneille, Molière "suprimem ou quase suprimem a 'mise en scène' exterior, mas exploram ao infinito os deslocamentos interiores". Em seguida, Artaud exclama: "A escravização ao autor, a submissão ao texto, que barco fúnebre!". Nada de procurar, na encenação, uma fidelidade passiva à palavra do dramaturgo. Como "cada texto tem possibilidades infinitas", deve-se exprimir seu espírito e não sua letra. E vem o conselho: "Há que restabelecer um tipo de intercomunicação magnética entre o espírito do autor e o espírito do encenador", proposta que parece ser o desejo, hoje em dia, dos realizadores mais lúcidos do teatro brasileiro.
Artaud não concordava, também, com a reteatralização pura e simples do teatro, que foi uma bandeira para retirá-lo do domínio da literatura. Ele não discute, aí, Gordon Craig e Adolphe Appia, mas menciona "determinadas tradições novas, vindas da Rússia e de outras partes". Reteatralizar o teatro, nesses termos, tornou-se para ele "o novo grito monstruoso". O "teatro precisa ser relançado na vida" -eis seu brado veemente. Não se trata, contudo, de imitar a vida. Proclama Artaud que a necessidade "é reencontrar a vida do teatro, em toda a sua liberdade".
Em vez de abandonar-se ao circo e ao "music hall", que exercem atração sobre o mundo moderno, ele "diria antes que é preciso intelectualizar o texto". "O que perdemos do lado estritamente místico, podemos reconquistá-lo do lado intelectual." Cumpre, para isso, "reaprender a ser místico, ao menos de uma certa maneira". Acrescenta Artaud que é necessário "desembaraçar-se não somente de toda realidade, de toda verossimilhança, mas até mesmo de toda lógica, se ao cabo do ilogismo percebemos ainda a vida". Tanto a realidade, que levaria ao realismo, como a verossimilhança, que supõe a imitação da verdade, não interessam aos objetivos de Artaud. "Seria preciso mudar a conformação da sala e que o palco fosse deslocável segundo as necessidades da ação. Seria preciso igualmente que o lado estritamente espetáculo do espetáculo fosse suprimido. Ir-se-ia lá não tanto para ver, mas para participar". Seria completa, assim, a integração palco-platéia: "O público deve ter a sensação de que poderia, sem uma operação muito engenhosa, fazer o que os atores fazem". Não se encontraria, aí, o germe do "happening"?
Ao tratar do primeiro ano do Teatro Alfred Jarry, na temporada de 1926-1927, o teórico afirma a "necessidade de que o espetáculo ao qual assistimos seja único, que ele nos dê a impressão de ser tão imprevisto e tão incapaz de se repetir quanto qualquer ato da vida, qualquer acontecimento trazido pelas circunstâncias". Eis outra possível definição do "happening", como ele surgiria mais tarde. Ainda nesse mesmo escrito, Artaud anunciaria o "teatro pobre" de Grotowski, se o diretor polonês não preferisse sentir-se filiado à tradição russa, negando qualquer influência de "O Teatro e Seu Duplo". O teórico francês proclama o seu desprezo "por todos os meios de teatro propriamente ditos, tudo o que constitui o que se convencionou chamar encenação, assim como iluminação, cenários, figurinos etc.". Percebe-se a convergência dos conceitos de ambos, e não se pode negar que o papel de precursor cabe a Artaud.
No "Manifesto Por Um Teatro Abortado", fica evidente que o exercício do palco tem outros propósitos: "Se nós fazemos um teatro não é para representar peças, mas para conseguir que tudo quanto há de obscuro no espírito, de enfurnado, de irrevelado, se manifeste em uma espécie de projeção material, real". O teatro é concebido "como uma verdadeira operação de magia". "O Teatro e a Psicologia - O Teatro e a Poesia" advoga a criação de "uma verdadeira linguagem baseada no signo em vez de na palavra". Na Europa, se confundiria teatro com texto. E a encenação seria "apenas um auxiliar, pode-se dizer, decorativo do texto", devendo opor-se a essa uma concepção "orgânica e profunda, onde a encenação se torna uma linguagem particular". Daí a conclusão: "O teatro só será devolvido a ele mesmo no dia em que toda a representação dramática se desenvolver a partir do palco, e não como uma segunda versão de um texto definitivamente escrito, suficiente a si mesmo, e limitado às suas próprias possibilidades". Quem não enxerga aí o germe da mais consequente criação coletiva?
Carta publicada em "L'Intransigeant", em 1932, condena o teatro então praticado porque perdeu o sentimento da seriedade e do riso: "Enfim, ele rompeu com o espírito de anarquia profunda que é a base de toda a poesia". Em "O Teatro Que Vou Fundar", Artaud admitiu a hipótese, quanto ao local, de optar por um galpão, reconstruído "segundo princípios que tendem a se aproximar da arquitetura de certas igrejas, ou melhor, de certos lugares sagrados e de certos templos do Alto Tibete". Depois de repetir que tem do teatro uma idéia religiosa e metafísica, porém no sentido de uma ação mágica, real, absolutamente efetiva, ele julga inútil dizer que considera "vãs todas as tentativas feitas na Alemanha, na Rússia ou na América, nesses últimos tempos, para submeter o teatro às finalidades sociais e revolucionárias imediatas". Acha-se implícita, aí, a crença na inoperância prática, por exemplo, das teorias brechtianas.
No empenho de devolver ao teatro o "caráter ritual primitivo", Artaud esclarece à revista "Comoedia" que, em seu empreendimento, "nós não encenaremos peças escritas. Os espetáculos serão feitos diretamente em cena e com todos os meios que a cena oferece, mas tomada como uma linguagem do mesmo nível dos diálogos do teatro escrito e das palavras. O que não quer dizer que estes espetáculos não serão rigorosamente elaborados e preestabelecidos definitivamente antes de serem encenados".
Correspondência sem menção a destinatário reitera a postura intransigente de Artaud. Diz ele: "O teatro, que é poesia em ação, poesia realizada, tem de ser metafísico ou então não ser". Não o assustam expressões ásperas: "Aqueles que visam dar, que visam devolver ao público a religião do teatro, e especialmente, de um certo teatro literário de obras consagradas: Ésquilo, Eurípides, Shakespeare, Molière, Corneille, Racine, para mim cospem fora da escarradeira".
Para quem se indaga sobre o significado do título "O Teatro e Seu Duplo", a explicação contida numa carta a Jean Paulhan não deixa margem a dúvidas. De acordo com Artaud, "se o teatro duplica a vida, a vida duplica o verdadeiro teatro e isso não tem nada a ver com as idéias de Oscar Wilde sobre a arte. Esse título corresponderá a todos os duplos do teatro que penso ter encontrado há tantos anos: a metafísica, a peste, a crueldade. (...) É no palco que se reconstitui a união do pensamento, do gesto, do ato. O Duplo do Teatro é o real não utilizado pelos homens de hoje".
A parte relativa ao cinema divulga "A Concha e o Clérigo", único roteiro de Artaud que chegou a ser filmado. Impedido pela diretora Germaine Dulac de ter acesso a qualquer fase da realização, ele repudiou certos equívocos grosseiros, ofendendo-a na primeira projeção pública. O roteiro havia procurado "concretizar esta idéia de cinema visual, onde a própria psicologia é devorada pelos atos". Dificilmente se poderia avaliar o original pelo resumo apresentado, mas é certo que a inspiração se aparenta inequivocamente ao surrealismo, movimento com o qual Artaud rompeu.

Os dons proféticos de Artaud se exercem num juízo candente: "O cinema vai aproximar-se cada vez mais do fantástico, esse fantástico que, percebemos sempre mais, é na realidade todo o real, ou então não viverá. Ou melhor, o fantástico será o real do cinema, como é o da pintura, da poesia". Síntese sobre a qual valerá a pena meditar a estética cinematográfica.
Também em relação à pintura não é nada convencional a reflexão de Artaud. Ele não faz uma crítica acadêmica dos quadros, nem se limita a descrever o que veriam olhos "normais". Seu procedimento é uma espécie de iluminação, como se buscasse, atrás das formas e das cores, uma existência irrevelada. Leiam-se os quatro textos enfeixados na coletânea sob a rubrica "Na Pintura" (o último deles, inspirado nos quadros de André Masson), sem contar "Van Gogh - O Suicidado da Sociedade", que os organizadores preferiram, acertadamente, acolher no capítulo mais amplo de "Na Vida".
A incandescência verbal de Artaud autorizaria pensar que muitos textos reunidos "Na Poesia" poderiam ser tomados como poemas em prosa, bem como quase tudo que ele produziu. Em "O Umbigo dos Limbos", lê-se: "Eu não concebo nenhuma obra separada da vida". Adiante: "Eu sofro porque o Espírito não está na vida e porque a vida não seja o Espírito".
Não é de estranhar, porém, a continuidade das palavras: "Que me desculpem minha liberdade absoluta. Eu me recuso a fazer diferenças entre qualquer dos minutos de mim mesmo. Eu não reconheço plano em meu espírito". Para dar lugar a uma ruptura: "É preciso acabar com o Espírito assim como com a literatura. Eu digo que o Espírito e a vida comunicam em todos os graus. Eu gostaria de fazer um Livro que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e que os levasse lá onde jamais consentiriam em ir, uma porta simplesmente aberta para a realidade". Não foi ele quem se enclausurou na loucura: os outros é que não souberam ver a realidade revelada.
"O Pesa-Nervos", depois de afirmar a existência da inspiração e a crença "nos aerólitos mentais, em cosmogonias individuais", rejeita toda a escritura como uma porcaria e enfatiza: "Todo o mundo literário é porco, e especialmente o deste tempo". A exemplificação dos porcos abrange as múltiplas formas de inautenticidade.
"A Declaração de 27 de Janeiro de 1925", escrita por Artaud e assinada por 27 nomes, comprova a identificação inicial do escritor com os pressupostos do surrealismo, só recusada quando o movimento se associou ao marxismo. O manifesto, que recebeu a forma de cartaz, se exprime em nove artigos taxativos, que visam a abalar os repousados meios intelectuais."Nós nada temos a ver com a literatura" é o primeiro clamor, para assustar os bem-pensantes. O surrealismo se define como "meio de libertação total do espírito e de tudo o que se lhe assemelha". Junta-se "a palavra 'surrealismo' à palavra 'revolução' unicamente para mostrar o caráter desinteressado, desprendido, e mesmo inteiramente desesperado, desta revolução" (o desespero seria o oposto da frieza comunista). "Nós somos especialistas da Revolta" -depõe o documento. Recusa-se o manifesto a considerar o surrealismo uma forma poética: "É um grito do espírito que se volta para si mesmo e está de fato decidido a triturar seus entraves, e se necessário por meio de martelos materiais!" Evidencia-se, na "Declaração", o empenho total da natureza de Artaud.
Fica difícil para um homem comum acreditar na boa saúde mental de Van Gogh, que, segundo Artaud, "em toda a sua vida, apenas queimou uma mão e, fora disso, não fez mais que cortar uma vez a orelha esquerda". Não há nenhuma ironia nessa afirmação, porque os absurdos do mundo "normal" são, para o ensaísta, muito mais graves. O que se ressalta, no belíssimo texto "Van Gogh - O Suicidado da Sociedade", é a lucidez superior dos gênios, dos escolhidos, que na sua visão penetrante são capazes de modificar a realidade.
O "alienado autêntico" é "um homem que preferiu ficar louco, no sentido em que socialmente isto é entendido, a trair uma certa idéia superior de honra humana. (...) Porque um alienado é também um homem que a sociedade não quis ouvir e a quem ela quis impedir de dizer verdades insuportáveis". Para Artaud, "não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, não há visões, não há alucinações. Há a verdade tórrida de um sol de duas horas da tarde". Tomado pelo poder revelador da arte de Van Gogh, ele acrescenta que, "para entender um girassol ao natural, é preciso agora voltar a Van Gogh, assim como para entender uma tempestade ao natural,/ um céu tempestuoso,/ uma planície ao natural, não se poderá mais deixar de voltar a Van Gogh".
O esclarecedor prefácio a "Linguagem e Vida", assinado por Sílvia Fernandes e J. Guinsburg, alude à traição, num empreendimento do gênero: "Tentar organizar alguns escritos artaudianos tomando como fio seu pensamento sobre loucura, encenação, cinema e linguagem é, sem dúvida, traí-lo. Artaud não pode ser tratado apenas como ensaísta. É infinitamente maior que isso". Seja como for, o volume contribui muito para o melhor conhecimento de um dos grandes profetas da modernidade.

Texto Anterior: Luz nova sobre os mascates
Próximo Texto: A loucura em primeira mão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.